Crónicas

Transparência(s)

O Presidente do Governo Regional que nesta primeira semana de janeiro asfixia o setor cultural é o mesmo que, na última semana de dezembro, promoveu a realização de fogo de artifício

A minha admiração por Ana Gomes remonta a finais dos anos 90, ainda estava eu na faculdade e atenta à situação de Timor Leste. Foi Jaime Gama, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros, que a destacou para a Indonésia, em 1999, para conduzir o processo de independência de Timor-Leste, uma pasta difícil e que envolveu situações de grande tensão e violência. Mas a relação de Ana Gomes com a causa timorense remonta à década de 80, quando assumiu a posição de consultora diplomática da Presidência do General Ramalho Eanes, altura em que trabalhou em parceria com Maria de Lourdes Pintasilgo, também ela consultora encarregue da divisão de Timor. É também graças ao seu trabalho diplomático que Timor-Leste não saiu da agenda política nacional e internacional.

Nessa altura, quando decorria todo o processo que levou à independência de Timor e em que tive a oportunidade de seguir a tenacidade com que defendia a causa, eu ainda não sabia que Ana Gomes tinha começado muito cedo esta sua inclinação para arriscar tudo pelo que considera justo; eu não sabia, como hoje sei, que havia sido uma das jovens estudantes resistentes ao Estado Novo, no início da década de 70, correndo várias vezes o risco de ser presa. Quando acontece o 25 de abril, estava suspensa, acusada de «atividades subversivas». É por tudo isto que (me) é tão significativo que Ana Gomes tenha dito, num dos debates das presidenciais da última semana, que «(...) é pela Democracia que nós nos salvaremos. É pelo reforço da Democracia, pela regeneração da Democracia».

Uma das qualidades que o ex-Presidente Ramalho Eanes lhe reconhece é a capacidade para não deixar de dizer o que pensa a quem decide «com oportunidade, elegância e determinação». Independentemente do facto de a poder prejudicar ou não, acrescento eu. E esta é uma das características fundamentais de quem é democrata, uma condição necessária ao funcionamento de qualquer democracia saudável: não temermos dizer o que pensamos, não nos calarmos em função dos riscos. Ana Gomes não tem medo de criticar o que considera ser criticável nem teme ser criticada.

Ana Gomes é a candidata que apoio à Presidência da República porque é dotada de características que muito admiro e que, pessoalmente, considero fundamentais para o exercício da política: conhecimento, persistência na luta por aquilo em que acredita, uma enorme capacidade de trabalho, defesa intransigente da Democracia e compromisso absoluto com os Direitos Humanos.

A pandemia atingiu a Região em força e estamos sem saber muito bem o que fazer com ela. É uma situação nova que requer ponderação e que implica, inevitavelmente, tomadas de decisão que podem revelar-se umas acertadas e outras menos bem conseguidas. No meio de tudo isto, irrealista foi pensarmos que lhe escapávamos ou que faríamos tudo como deve ser, até porque não sabemos o que é isso de «fazer tudo como deve ser».

Esta semana ficamos a conhecer algumas medidas novas de contenção da pandemia. No que diz respeito ao setor cultural, e relativamente às condições em que os espetáculos culturais podem ocorrer, fiquei com algumas dúvidas:

1.º) Se um restaurante, ou bar, contratar alguém do setor das artes e espetáculos para abrilhantar as refeições, a lotação do local passa a obedecer à regra de cinco pessoas ou mantém-se a lotação a 50% dos lugares do espaço?

2.º) Se um concerto de música sacra for agendado numa igreja, a lotação passa a obedecer à regra de cinco pessoas ou aplica-se a exceção concedida às cerimónias religiosas?

3.º) Se uma entidade cultural agendar, imaginemos, um monólogo num autocarro, a lotação passa a obedecer à regra de cinco pessoas ou aplica-se a lotação de dois terços relativa aos meios de transporte coletivos?

Argumenta o Secretário com a tutela que as regras para o setor da cultura resultam da priorização à Saúde Pública. Quer com isso dizer que no que diz respeito aos outros setores o imperativo que orientou a decisão não foi o mesmo? Sublinhe-se que não defendo que não se tome as medidas necessárias, recomendadas pelas entidades de Saúde Pública. Mas gostava que fossem públicos os critérios científicos que fundamentam a decisão que torna o setor cultural «a exceção». Qual é o critério científico que fundamenta que os transportes públicos tenham uma lotação máxima de dois terços (o que em alguns casos significa que os autocarros circulem com demasiadas pessoas, sem o devido distanciamento social) mas que um espaço como o Teatro Baltazar Dias, com lotação equivalente a sete ou oito autocarros, seja obrigado a reduzir a sua lotação a cinco pessoas?

«Eu não sou pressionável, nem ando nervoso, nem ando histérico.» É desta forma que o Presidente do Governo Regional comenta as petições relativamente às medidas tomadas na cultura e na educação e que revelam que os critérios que sustentam as decisões não são claros.

O Presidente teve tempo para comentar nervosa e depreciativamente as petições, mas não teve ainda tempo para explicar por que razão foi desautorizado pelo Secretário Regional da Educação. Porque não acredito que quando o Presidente anunciou a testagem de toda a comunidade escolar estivesse deliberadamente a faltar à verdade, nem tão pouco acredito que tivesse sido o entusiasmo do momento a ditar o anúncio.

«Eu estou aqui para governar e, neste momento, a minha governação é cumprir aquilo que está determinado.» Resta saber: determinado por quem e com que critérios? O Presidente do Governo Regional que nesta primeira semana de janeiro asfixia o setor cultural é o mesmo que, na última semana de dezembro, promoveu a realização de fogo de artifício e festas pagas a peso de ouro que reuniram centenas de convivas. É o mesmo Presidente que disse às pessoas para não cumprirem as suas tradições natalícias ao mesmo tempo que afirmava que o seu governo não podia deixar de as cumprir.

Mas depois o inferno são sempre os outros.

Fechar Menu