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Flashes

Um belo dia o autor (eu, no caso, a por-me em terceira pessoa), depois de incontáveis madrugadas, a determinar que o livro está acabado. É uma aleluia, diria mesmo um adventício, anunciá-lo. Ainda mais em casa onde fui nascido, criado e formatado a ser gente. A fotografia dos meus pais, as coisas da sala e o encanto de cada artefacto, recordam-me bocados do tempo nos tempos vividos. E à entrada da sala, a minha mãe, que me re-significa a “Hora Absurda”, de Fernando Pessoa...”O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas”.

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E por falar em silêncio, que é tudo o que me grita, nos poemas digitados para serem livro, resguardo sempre isto de Eduardo Lourenço (em “Vocação do Silêncio”): “São os poetas que criam o lugar onde devemos encontrá-los.” E o lugar de encontro, o lugar da escrita e da fala é sempre o existencialismo desta casa e desta cidade. O lugar que me germina sementes de metáfora, uma imatéria-prima que tira fôlego ao esgar da manhã.

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O autor gosta de amanhecer na cidade da Praia como em nenhum outro lugar. Em casa, dizia, um papagaio, vindo da ilha do Príncipe, imitava os bons dias do avô e repetia o barulho da água nas torneiras. Era uma festa quando também imitava o bater na aldrava da porta e a nha Gina a reclamar “esse aí parece o dono desta casa”. Eu já ia contar-vos que a casa tem o som a “Lamento”, de John Coltrane, tocado ao clarinete do meu pai, mas pergunto-me por quê ou para quê.

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Na sexta-feira, dia 27, mal chegado à cidade, fiz uma pequena intervenção no Colóquio sobre a Mulher Cabo-verdiana, em torno do livro de Carlota de Barros, “Sol de Infância - Memórias das macias manhãs solares” (Rosa de Porcelana Editora), em webinário, a convite da autora e do investigador e académico Hilarino da Cruz. Às tantas, em verdade no último terço da fala, a instabilidade da Internet tira-me do ar. E na hora em que iria pontuar que Carlota de Barros escreve com impulso da solidão criativa e desvelo existencial feminino. Sem estereótipos de género, mas de maciez feminista, a que emerge, em paralelo, da poética de Adélia Prado. Por coincidência, a Márcia Souto, também editora de Carlota de Barros, postava nesse dia esta de Adélia Prado: “A poesia é “o rastro divino na brutalidade das coisas”. Assim um cheirinho do “Sol de Infância - Memórias das macias manhãs solares”...

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Nesse mesmo dia, fui à Biblioteca Nacional, acto de entrega do Prémio Literário Guerra Junqueiro - Lusofonia 2020 a Jorge Carlos Fonseca, Presidente da República de Cabo Verde e membro da Academia Cabo-verdiana de Letras. Não será tardia uma palavra sobre o merecimento deste prémio a quem escreveu, entre outros livros, “A sedutora tinta de minhas noutes” (Rosa de Porcelana Editora), cidadão muito bem ungido de arte literária. Ele tem um eu-que-fala poético diferente e destrinçado de qualquer outro das letras cabo-verdianas, mas com os tais “silêncios eleitos” do poema, aqui mencionado de Pessoa. Sim...perscruto nesta casa e nesta cidade, tanto quanto neste tempo, com toda a sua tensão dialética, uma vibração existencial que nem vos conto.

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