Crónicas

Fotografia estereoscópica: a invenção de uma imagem real – parte I

Após um interregno de algumas semanas, o regresso a este espaço faz-se através de uma tentativa de invenção de um olhar a partir de um par de imagens estereoscópicas, cuja datação, mais ou menos ampla, corresponde ao período áureo da produção fotográfica estereoscópica, que ocorre de forma profícua em diversos locais do mundo, incluindo Portugal e, aparente e especificamente, a Madeira, desde a segunda metade do século XIX até inícios do século XX.

A tecnologia estereoscópica, génese de tecnologias usadas hoje em dia no cinema 3D, na indústria dos jogos de vídeo, em dispositivos de realidade virtual e noutras experiências imersivas, nasceu em 1838 a partir de pesquisas sobre os princípios de visão binocular e foi, desde logo, aplicada à fotografia. Referia-me, pois, à invenção de um olhar, na medida em que a imagem estereoscópica apenas ocorre na mente do observador, fruto da conjugação de duas imagens (no caso, fotografias) semelhantes, mas ligeiramente díspares, as quais, quando vistas através de um visor apropriado, geram a perceção de uma terceira imagem que sugere a tridimensionalidade do espaço. Esta dimensão subjetiva foi reforçada pela historiadora da fotografia e do cinema, Teresa Mendes Flores, no texto “Simmel’s alpine aesthetics and the stereoscope. The aesthetic qualities of the stereoscopic gaze and the stereo views by Manuel Alvarez”, publicado em 2020 na revista Early Popular Visual Culture. Aí, é destacado um aspeto óbvio do dispositivo enquanto elemento que “apenas reúne as condições necessárias para que a fusão percetiva ocorra”, ou seja, efetivamente composto por um par de imagens, cada uma delas correspondente a cada um dos olhos e com diferentes perspetivas sobre o mesmo objeto e que, na ausência de um instrumento auxiliar, carece do efeito de perceção da tridimensionalidade – aliás, tal como sucede em relação às imagens aqui reproduzidas.

Já de acordo com A Terceira Imagem. A fotografia estereoscópica em Portugal, de Victor Flores, imagens estereoscópicas estão entre as fotografias mais antigas conhecidas no país, sendo de destacar a sua importância no âmbito da produção daquele que é o mais conceituado fotógrafo português de Oitocentos, Carlos Relvas, a qual foi objeto de uma rigorosa investigação que deu origem ao catálogo online “Carlos Relvas Stereo Raisonné”. Aqui, entre outras importantes informações, podemos visualizar e confrontar os pares de imagens positivas com os seus negativos (e áreas posteriormente eliminadas destes últimos), e obter o efeito tridimensional através de ficheiros com formato GIF ou (se munidos dos óculos acertados) anáglifo. A tecnologia digital serve aqui com um bom propósito epistemológico o efeito de perceção de que as imagens foram histórica e potencialmente dotadas.

Se devemos considerar a importância da circulação desta produção entre diversos locais – que, em retrospetiva, nos poderá parecer inusitada – na difusão, promoção e apropriação de “vistas”, há que pensar igualmente na sua importância ao nível da criação de temas ou certas iconografias fotográficas.

Não tendo tido oportunidade para pesquisar esse “corpo” fotográfico, avançaria que a produção de fotografias estereoscópicas desse período na Madeira também se inscreveu no ato e gesto de construção de uma visualidade particular, que privilegiou a criação da “paisagem” e de um olhar turístico sobre o mundo (olhar esse que foi central à exposição que teve lugar no Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s em 2019, Imagens Nómadas 1860 – 1940, e que contou com a curadoria de Emília Tavares e Margarida Medeiros).

Para finalizar, por hoje detenho-me num par de imagens de um fotógrafo com uma atividade muito interessante e já aqui referido, Joaquim Augusto de Sousa, e as quais se encontram legendadas da seguinte forma: “mulher a colocar roupa a corar na Ribeira de Santa Luzia, concelho do Funchal”. Esta gestualidade fotográfica parece inscrever-se numa tentativa de construção de imagéticas sobre o quotidiano tornando-o pitoresco, que começam a estar em voga na segunda metade do século XIX. Embora não possamos ver a sua tridimensionalidade, podemos supor que, enquanto única imagem (a resultante da fusão das duas aqui reproduzidas), esta se tornava tanto mais pitoresca na medida em que era apropriável por aqueles que, no conforto dos seus salões, simultaneamente praticavam a imersão e a distância desse “outro” (em tantas situações de quotidiano provavelmente tão próximo). Um “outro” apresentado à sua vista e construído deste modo enquanto “cena” ao alcance de um sujeito observador.

Nota: este texto conta com alguns contributos da pesquisa da antropóloga Daniela Rodrigues, sobre um fundo fotográfico estereoscópico privado para o site www.foto-sintese.pt. A tradução para português do excerto de frase do artigo de Teresa Mendes Flores é minha, e agradeço-lhe muito pela generosa partilha, recomendando a leitura integral do seu texto para uma reflexão sobre a relação entre estereoscopia fotográfica e paisagem.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.