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Crónicas

A neta de agricultores

Umas semanas de calor incomum resgatavam os medos na vizinhança que, podia não ser muito instruída e estar confusa, mas conhecia de cor os conflitos que a falta de chuva trazia

Eu venho de uma casa com fazenda e de uma família de agricultores e, por isso, a chuva, o vento e o calor nunca foram apenas uma contrariedade ou dia bonito. O tempo no Laranjal da minha infância era, antes de mais, uma preocupação. Uns chuviscos fora de época podiam estragar uma colheita, mas a minha mãe e as minhas tias tinham mais medo das chuvadas, daquelas que carregavam a ribeira de água e derrubavam os muros de pedra da fazenda.

Quando chovia muito era mau, quando chovia pouco também e ninguém gostava dos anos de seca. Ainda não se falava de alterações climáticas e já o tempo alimentava conversas quando a minha mãe ou uma das minhas tias se cruzava pelo caminho com um vizinho e, ali mesmo, debatiam o mundo e o futuro por causa da falta de água. “Ai vizinha, eu já sabia que isto ia ser assim, as primeiras chuvas vieram muito cedo, muito no começo de Setembro”.

E depois olhavam para o céu e concluíam que o calor ia continuar. “Não vê os ‘papassurros’? É sinal de tempo forte”. Os ‘papassurros’ era o nome que davam às nuvens que apareciam em alguns dias de vento de leste. Os homens com quem se cruzavam partilhavam a mesma preocupação, alguns abanavam a cabeça e acrescentavam que, se calhar, o fim do mundo estava mais perto. E não se puxava o assunto de forma leviana, pois nos anos 70 e no Laranjal o pavor ao ano 2000 era real. As pessoas ligavam o fim do século ao Apocalipse, a história que o padre lia na igreja.

A missa em que o padre lia o Apocalipse segundo São João era deveras perturbadora, ainda mais na voz do padre Rebola, o nosso pároco, clérigo conservador e à moda antiga, que sabia como assustar o rebanho, mesmo que sentados nos bancos da igreja estivessem todos os miúdos dos primeiros anos da catequese. A história era má, o mundo ia acabar, a maior parte da humanidade seria engolida por cataclismos, mas havia esperança. Deus iria salvar os melhores, os escolhidos para entrar no Céu. A questão era que, em consciência, poucos acreditavam que pudessem estar nessa espécie de ´guest list’ divina.

Umas semanas de calor incomum resgatavam os medos na vizinhança que, podia não ser muito instruída e estar confusa, mas conhecia de cor os conflitos que a falta de chuva trazia. A água de heréus do Poço das Freiras ia começar o giro mais cedo e, com isso, vinham as zaragatas e discussões para tentar fazer letra morta da lista escrita e estabelecida pelo meu tio-avô. A minha tia Teresa, que assumira a gestão da fazenda, ia muitas vezes buscar o papel para esclarecer dúvidas, a ver quem é que ia primeiro e quantas horas tinha para regar o feijão, as bananeiras ou a vinha.

Às vezes o meu pai era chamado para manter a ordem e, claro, por medir um metro e oitenta e ser forte lá se impunha o giro, não fosse alguém trocar as voltas e abrasar tudo sem água. Quanto ao fim do mundo, a minha mãe costumava dizer que ia chegar e também dizia para não me preocupar com isso. “Sabes o fim do mundo não é exactamente como no Apocalipse, acontece todos os dias quando morre uma pessoa”. A explicação era quase assustadora como a história do padre Rebola, mas o Laranjal dos anos 70 era assim mesmo, um lugar de agricultores preocupados com tudo o que lhes estragava as colheitas e a vida.