Crónicas

Hans Küng (1928 – 2021)

Eu sei: haveria por aí uma infinidade de temas previsíveis para estas “crónicas da areia” que a maré vai levando, a começar pelo improvável destino do engenheiro mais famoso de Portugal — mas não, já existe um perorar demais, e não vamos perder tempo com isso. Por agora, apenas esta fala evangélica: “Deixai que os mortos enterrem os seus mortos”! Sem ressurreição possível, para uns ou para outros...

Hoje, a ideia era alinhar umas breves palavras sobre um dos mais brilhantes teólogos do século XX, o suíço Hans Kung (HK), falecido a 6 de abril, com a provecta idade de 93 anos. Não ignoro que, para muitos, o tema se assemelhe a falar de “ovnis”, o que está sintonia com a imensa ignorância geral em matéria de religião, num país que herdou a velha “cristandade” mas pouco se deu ao trabalho de pensá-la, antes seguiu o rumo geracional da tradição, as mais das vezes em pesada vertente “clerical”, daí resultando o anticlericalismo larvar que de há muito é apanágio da sociedade portuguesa. Basta ver que, no retângulo lusitano, a notícia do falecimento de HK foi pouco mais que lacónica, sem que tenha suscitado especiais obituários. Enfim, o costume.

Padre desde 1954, HK tornou-se Professor de Teologia Católica da Universidade de Tubinga em 1960 (onde foi colega de Ratzinger), tendo depois participado, como especialista e com contributos fundamentais, no Concílio Vaticano II. Nos anos 70 e 80, veio a acentuar-se a dimensão profética e combativa do seu pensamento, com críticas incisivas a vários aspetos e atitudes do catolicismo institucional, acabando por ser objeto, em 1979, de uma Declaração da Doutrina da Fé, onde se afirmava que HK “já não pode ser considerado teólogo católico, nem pode, como tal, exercer o cargo de ensinar”. Em face disso, Kung viria, nas décadas seguintes, a reorientar o seu foco de investigação para o aprofundamento do diálogo entre as religiões abraâmicas e na procura de uma Ética fundamental como suporte autêntico para a paz mundial. Faleceu católico, pois, como disse outro grande teólogo e hoje cardeal, Walter Kasper, “ele nunca pensou em deixar a Igreja” e teve, no fim da vida, uma “reaproximação” com o Papa Francisco, que foi informado do agravamento do seu estado de saúde e da sua vontade de “morrer em paz com a Igreja”. A sua preocupação com o diálogo inter-religioso e com o estado geral do mundo, fez com que o seu trabalho evoluísse no sentido da “divulgação”, escrevendo grandes obras de síntese e rigor, uma espécie de “summas” de fulgurante clareza sobre temas centrais do pensamento cristão, sempre em diálogo estrito com as grandes correntes da filosofia e da cultura, de que são belos exemplos o “Ser Cristão” e o “Existe Deus?”. Como salienta João Duque, Professor de Teologia da UCP, as suas últimas obras consolidam a preocupação de “encontrar os mínimos denominadores comuns a todas as culturas e religiões”. A sua morte deixa um legado inestimável de reflexão, clareza e abertura a novos desafios, como o de pensar em chave cristã os grandes temas da modernidade e do habitat cultural contemporâneo: o mistério da fé face à herança científica, a busca do sentido da vida face ao absurdo da injustiça e da morte. Felizmente, mais de uma dezena de títulos seus existem em português. Dádiva fulcral: novos paradigmas de compreensão da realidade exigem reinterpretação e renovação de linguagem, sempre implicadas na chamada “inculturação da fé”. Ajudar-nos a intuir a alegria de uma verdadeira racionalidade crente, não será certamente o legado menor da sua estimulante reflexão teológica.