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Francisco Sá Carneiro, compromisso com a fé e com a intervenção política

A vida de Francisco Sá Carneiro tem um propósito para muitos de nós

Passados 40 anos sobre a morte trágica de Sá Carneiro impõe-se uma pergunta: Sá Carneiro está longe ou próximo da vida política actual? As suas permanentes “fugas para a frente”, o seu radicalismo, as suas tácticas inteligentes, consubstanciadas numa profunda intransigência de princípios, muitas vezes contra tudo e contra todos, mesmo dentro do próprio partido, fazem ainda sentido na praxis política dos dias de hoje? Fará sentido o seu conceito de social democracia nos nossos dias de globalização? Fará sentido o conceito de Aliança Democrática que concebeu como contraponto à hegemonia das forças de esquerda e hoje novamente na ribalta?

A resposta a esta e outras questões, constituem um poderoso auxiliar de análise ao pensamento e percurso político de uma das mais polémicas figuras portuguesas da segunda metade do século XX.

Conheci Francisco Sá Carneiro por intermédio de Marcelo Rebelo de Sousa no ano de 1974 na Sede fundacional do PPD, no Rato, e com ele convivi em muitas ocasiões e acontecimentos da vida política portuguesa nesse período conturbado da história nacional.

Durante esses anos fiquei com a ideia que no seu pensamento urgia reformar Portugal, em vez de o revolucionar. Abominava a tutela militar, o núcleo duro do MFA, o Conselho da Revolução, as esquerdas radicais. Civilizar o país era trocar esse estado de coisas por uma pátria com direitos e liberdades garantidas, um Estado de direito, uma Democracia reformista, civilista, virada para a Europa e nela inscrita. Sonhava com uma sociedade civil liberta e um país com participação no cenário europeu. E tinha pressa…

Recordo a este propósito uma cena na qual participei no então Aeroporto de Pedras Rubras, num fim de tarde, aguardando o regresso a Lisboa. Eu, porque membro do Secretariado da então “Carta Aberta”, hoje UGT, e o Francisco que na altura sempre que podia, gozava o fim de semana com a família no Porto. Todas as segundas feiras nos encontrávamos nesse voo com destino a Lisboa e, enquanto esperávamos a partida do avião, púnhamos a conversa em dia. Eram sempre momentos muito agradáveis. Numa dessas esperas do avião, a TAP avisou pela instalação sonora que os passageiros que quisessem aproveitar os lugares disponíveis, no avião que ia partir imediatamente, o podiam fazer. Francisco não perdeu tempo, despediu-se e lá foi…

O meu voo, pouco depois, correu normalmente, não fosse à chegada, algo desesperada, Conceição Monteiro, então secretária de Sá Carneiro, aguardava a bagagem do Francisco que ia no meu avião e que só não foi no dele porque tinha pressa. Sá Carneiro irritava-se muitas vezes com a perda de tempo.

Narrado este episódio, e porque a vida não se reduz a séries de acontecimentos e a circunstâncias históricas é necessário descobrir em toda a história um elemento de mistério, que esclarece o sentido da pessoa que cada um, em si, transporta. Localizar, na sua cronologia, os factos relevantes, os dados concretos. Encontrar neles uma moral social e politica cristã aplicada. Partir dela ao encontro do mistério que a determina. Vaivém permanente: das coisas à pessoa, do visível ao invisível, do objectivo ao transcendente.

Já Karol Wojtyla, em “Pessoa e Acto”, anunciava que a acção manifesta a pessoa, que a experiência concreta revela o ser. Nisto, o pensamento do Papa abria um horizonte de esperança. Esperança de conseguir confirmar, como em Francisco Sá Carneiro, a acção não se reduz a uma função, antes é expressão da profunda densidade ontológica.

Elbert Hubbard proferia nos anos 20 do século passado que “alguns humanos têm êxito pelo que sabem, outros pelo que fazem, mas só alguns pelo que são”. As palavras de Hubbard remetem para o essencial. Recordam que o ser é a pátria da identidade, que é o garante da coerência e da unidade da vida.

O território de Francisco Sá Carneiro é conhecido. Ele é o defensor da liberdade, o adversário das ditaduras, o adepto da democracia, o deputado corajoso, o líder carismático, o governante firme, o Primeiro-Ministro estadista. Mas no subsolo deste território há raízes que importa descobrir. Elas são o sustento do seu pensamento, a força da sua acção.

Dizia anteriormente, que Francisco Sá Carneiro tinha pressa porque o tempo era curto, contudo, denso.

Denso o tempo. Densa a obra. Intensos os dias. Intensa a vontade de tudo querer. Depressa. Porque aquele que quer sente curta a vida. Por isso a vive num ápice. Toda. E o todo em cada fracção.

Marcelo Rebelo de Sousa, de quem era amigo e companheiro do primeiro dia, destaca-lhe a dimensão moral da vida, o caracter impoluto, a personalidade cortante, o culto da Pátria, o sentido de Estado”. Considera que as suas convicções mais profundas têm origem no personalismo cristão e no reformismo bersteiniano. Acentua a primeira. Destaca a importância de Emanuell Mounier.

Com Sá Carneiro aprendi que era necessário passar da existência ao ser. Do ser às suas causas. É este o centro da investigação política: ir ao centro, até ao lugar onde a luz faça ver e, fazendo-o, prova que a fé alicerça Sá Carneiro, que o Evangelho é o lugar de onde parte para a política, que o Personalismo Cristão é a filosofia que determina o essencial do seu pensamento e a centralidade que concede à pessoa humana, que a Doutrina Social da Igreja é a estrutura que suporta as suas concepções políticas e sectoriais e que motiva e marca a sua acção.

A vida de Francisco Sá Carneiro tem um propósito para muitos de nós: alicerçar a acção política em valores e princípios que estejam para além dos meros interesses de circunstância. Para ele a acção não se reduz a uma função, antes é a expressão da profunda densidade ontológica, alicerçada em sólidas referências religiosas e culturais, nas quais se destacam a filosofia personalista e a formação cristã.

Neste sentido, no rumo da Liberdade e da Democracia pela via legalista e reformista, sem rupturas e sem sobressaltos, Sá Carneiro muito contribuiu para a implementação e consolidação do Novo Regime, segundo os valores que nortearam a sua formação política.

“Só a morte o parou”.

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