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Pouco fraternos

Por cá, e após quarenta e tal anos de poder e contínua governação ao som da Paz, Pão, Povo e Liberdade

Olhando a divisão da sociedade americana polarizada à volta das eleições presidenciais, dir-se-ia que o estarmos em novembro e perto do feriado nacional de Ação de Graças – Thanksgiving – , mais do que nunca aconselharia recuperar o espírito fraterno da primeira celebração entre as populações autóctones e os primeiros colonizadores ingleses, e sentar republicanos e democratas à volta da tradicional mesa farta de peru, tarte de maçã e convivência cidadã. Outros exemplos de divisão radical, extremismo e violência igualmente nos interpelam: a situação na Palestina, a crise humanitária dos refugiados na Grécia, o recrudescer de preconceitos e conflitos raciais, são apenas alguns, aliados ao universo de incerteza no evoluir desta pandemia… Não esquecendo os negacionistas da crise climática, os que lucram com o dividir para reinar, e o fosso profundo entre a criminosa riqueza das contas offshore e a pobreza. O mundo é um lugar pouco fraterno. Faz falta relembrar o exemplo nobre de generosidade dado por S. Martinho no alvor do Cristianismo, quando para acudir ao pedido do mendigo enregelado pelo frio e chuva de novembro, cortou a sua capa ao meio, partilhando-a. Ou apreender a nova encíclica do Papa Francisco, “Fratelli Tutti”, com racionalidade e coração.

Por cá, e após quarenta e tal anos de poder e contínua governação ao som da Paz, Pão, Povo e Liberdade, com confortáveis e nunca contestadas maiorias absolutas, (nada a ver com as atuais querelas americanas) anunciou-se uma “Comissão de coordenação para a Estratégia Regional de Inclusão Social e Combate à Pobreza” (DN, 2-11-2020). A estrutural e a construída. Não se sabe se eventuais experiências de mesa escassa de pão, carteira farta de fim de mês de salário mínimo, ou assistencialista subsídio social que mal dão para sobreviver, contarão no currículo dos nomeados. Espera-se é que saibam ver, ouvir e sentir a diversidade dos contextos, e deixar-se interpelar por situações de injustiça e desigualdade inaceitáveis à dignidade humana, e consigam opor à nefasta tríade de pobreza, subsidiodependência e submissão, a virtuosa capacitação individual, a autonomia e a liberdade de que falam os direitos humanos. É o imperativo ético exigido ainda mais pelo contexto desta pandemia; de uma vez por todas, a luta contra a pobreza não pode estar refém de jogos e malabarismos políticos.

Em tempo de acalorada discussão par(a)lamentar do Orçamento, e por entre muita retórica e manipulação argumentativa à volta da ribalta das prioridades governativas e da mais equitativa partilha de recursos na imprevisibilidade atual, talvez fosse avisado começar de baixo para cima, nesta coisa da justa redistribuição da riqueza, indissociável da defesa da economia, porque é disso que se trata… Talvez questionar e calcular a parcela necessária para uma vida com um mínimo de dignidade, quando se perdem empregos e salários e decrescem os rendimentos. Quanto custa por pão na mesa, pagar um teto com um mínimo de conforto, tomar conta da saúde pessoal, atender aos encargos com filhos, auxiliar e prover o cuidado dos mais velhos? Qual o preço dos transportes de e para a escola, a universidade, o trabalho? E do desporto, da cultura, do lazer, direitos de uma verdadeira cidadania? Por fim, que quinhão de liberdade para um cidadão, quando recebe um salário ou subsídio que é ele mesmo reconhecidamente insuficiente para tudo isto e fonte de pobreza? A fraternidade talvez comece por aqui…

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