Em nome do Espírito do Porto Santo

Dizem os meus pais que os meus primeiros momentos de exigência despertaram nos liminares recônditos da gastronomia. Por algum motivo de imprecisão, eu que, por diversas vezes, me vejo na inerente necessidade de extrair a fatia de tomate da minha sandes de panado, desde cedo que nutri um sentimento aprazível para com as sopas de tomate. Inúmeras são as latentes associações das mais vívidas experiências aos sítios que serviram de palco para tamanhas vivências.

O dia ia-se entranhando nos ponteiros do relógio dada à extensa exposição solar - os incessantes namoriscos do mar com a areia, toda ela viçosa, de jeitos dourados, morosamente, aguardando pela retirada dos banhistas da sua praia de modo a finalmente desfrutar em privado do momento a sós com a loiraça. Decorre a hora de ponta das retiradas de toalhas, de guardasóis, de chinelos ou de sandálias - para os mais romanos - e de bolas insufláveis. No fundo significava que era hora de tomar banho.

Pais com crianças esbatem-se com o dilema do jantar e ponderam qual a melhor opção nutritiva para os seus rebentos. O idílico universo de pensamentos da maioria das crianças dispara esparguetes com salsichas, massas com atuns, lasanhas, quiçá apenas um Actimel. A mim, porém, assentava-me uma ligeira sopinha vermelha.

No âmago desta brisa nostálgica, mesclado de cumplicidade com a sopa, estava o Porto Santo, esta ilha de uva tão saborosa que concede tal sentimento de pertença. Sabido será que não serei o único apreciador de sopa de tomate, tão pouco serei o único a formar sulcos com os pés naquele terapêutico areal. No entanto, numa imensidão de admiradores de tomate ralado, e de “amóditas digitais”, vislumbra-se o nosso querido e estimado espaço, por inúmeras vezes congestionado nos dias comuns de trabalho, com acesso residual ao descanso, físico ou mental.

É um espaço para a descompressão como efeito primário. Fatigados da comida farta e bruta, atordoados do cansaço acumulado no trabalho, é bem-vindo um repouso. É hora de saborear, de valorizar o que temos, de nos escondermos das intempéries da vida. É hora de estarmos connosco.

Todavia, deixo uma adenda de precaução - a sua estadia e conseguinte descanso poderá conter algumas nuances, consoante os amigos, conhecidos e reconhecidos dos seus pais, dos seus tios, dos seus primos ou das suas próprias relações.

Finalizada a sopa, era atingido por uma maré de bocejos, denotando a chegada do João Pestana. E não há nada melhor para uma criança que não seja dormir de barriga preenchida após um longo dia de praia. Por sua vez, o fim do último dia naquele paraíso areento diverge, em quantias exacerbadas, do efeito póstumo da sopa. Não era um cenário muito favorável, especialmente para uma criança, que se deslumbrava com os piropos do mar e com os jeitos da areia. Uma criança deliciada, com os olhos jorrando de estimulação pelo lúcido sonho em que pernoitou durante cerca de uma semana. Por isso, é sempre um grande desafio, de extrema dificuldade, para os pais terem de contar ao filho que têm de regressar a casa, que não podem fazer mais castelos de areia, nem cavar buracos na areia, nem estender a toalha na areia, nem recostar-se na barriga da mãe sentada na areia, nem ficar assado pela areia - nem mesmo comer areia. A não ser daqui a um ano!

O Porto Santo é como os amores de verão. Discorre a passos gigantes, com baques em compassos quase repentinos, originados pela excitação que o romance veranil nos provoca. É tão curto em tempo da vida que temos e tão grande em vida no tempo que temos. O seu desfecho é salpicado com uma certa amargura, um descruzar de rotas.

Ficamos sem nos ver durante meses e, enquanto percorro atónito esse tempo, anseio pelo nosso mais célere reencontro.

Henrique Drumond