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Da fazenda até à cidade

Eu, que cresci a ouvir histórias do giro da água de rega, de desentendimentos por causa de partilhas, tive então o direito a sonhar com uma vida na cidade

Os homens subiam para as carroçarias das furgonetas ainda antes do dia nascer e os que não iam nas furgonetas, os horários levavam. O meu pai era dos que tinham transporte e o privilégio de ir ao lado do condutor. A vida que o esperava nas obras era dura, mas pagavam bem e o meu pai nem a 4.ª classe tinha. Não se queixava, era isso ou nada. Sempre podia trabalhar na fazenda e terra não faltava. O meu bisavô, o que tinha um retrato pintado pelo Danilo Gouveia na sala da minha tia Alice, deixou terras com água, poios de cana de açúcar, vinha, vimeiros, várias casas e um quinhão para as cinco netas.

O meu pai podia trabalhar a terra não fosse ter feito isso cedo demais, aos 10 anos, quando se fez moço da fazenda na casa de uma família de dinheiro. E ser moço da fazenda não era bom, nem dava dinheiro e ele fez-se pedreiro. Era isso quando eu nasci, foi com as obras que nos alimentou, vestiu e nos mandou para a escola com uma única ideia na cabeça: a de nos levar para longe das amarras que o obrigavam a entrar todos os dias na furgoneta. Aquele trabalho era pesado, feito de gente como ele, de pouca instrução e o meu pai apreciava os estudos, a educação e elegância de saber falar.

Se o meu pai tinha sonhos, a minha mãe, que se levantava todos os dias às seis da manhã amaldiçoava aquela vida que não a deixava dormir aquele sono pela manhã de que tanto gostava. E arrastava-se para fora da cama, contrariada por ter de coser os botões às camisas, fazer o almoço e meter o café com leite no termo. Lembro-me que se atrasava sempre, que era sempre no último minuto que a pasta ficava pronta, mas, apesar de tudo, nós tínhamos vantagem e privilégios que não estavam ao alcance de todos.

As obras davam trabalho e dinheiro, a fazenda dava o resto e o resto era muita coisa. A fruta e os legumes entravam casa adentro ao ritmo das estações do ano. Ao sábado matava-se uma galinha para o almoço de domingo. Eu, que cresci a ouvir histórias do giro da água de rega, de desentendimentos por causa de partilhas, tive então o direito a sonhar com uma vida na cidade, no conforto e com uma profissão de longe da fazenda. A viagem até aí chegar não foi tão simples.

Aquela vida do campo, aqueles hábitos da fazenda faziam parte de mim, da miúda de 10 anos que a minha mãe meteu no autocarro para fazer o ciclo preparatório. A mesma que só percebeu depois a vergonha que era levar a marmita de casa, isso era coisa dos mestres. Ou depois, quando ganhou consciência que as outras compravam roupa, não faziam saias com as sobras dos tecidos da alfaiataria do tio, mas nada foi tão radical como a mudança para Lisboa.

Era a mesma pequena do Laranjal numa cidade onde se comprava tudo, até a salsa e o orégão, ervas de cheiro que davam entre as pedras do muro. O impacto em mim, na pessoa que era aos 19 anos foi brutal e duro. No secundário, quando corria mal na cidade, eu tinha sempre o 12, que me levava a casa, às coisas que me eram familiares, ao quintal, aos cães e às galinhas. Em Lisboa era diferente, não havia saída a não ser enfrentar. Eu era a rapariga da Madeira, da fazenda, a filha do mestre Gabriel e da dona Celina, bordadeira de casa. Era tudo isto e era também os meus planos, os meus sonhos e aquele presente na universidade.

E Lisboa mostrou-me que não devia ter vergonha, nem medo. Aquelas eram as minhas raízes, as minhas origens e os amigos que fiz gostaram de mim por elas também, por ser daqui, por ter uma história tão madeirense.