Análise

Argumentação surreal

Importa haver inquéritos às falhas escondidas na madeira, mas atribuídas à DGS

A imprudência madeirense – aqui diagnosticada há uma semana – produziu sem demora, como era expectável, efeitos nefastos. O manifesto desejo de querer parecer melhor do que todo os outros, transformando abusivamente a luta contra a pandemia num campeonato de boas práticas médicas, aliado a doses excessivas de branqueamento de realidades contestadas, expôs a Região ao ridículo, com consequências que começam a ser conhecidas.

O facto de o presidente do Governo ter classificado de “surrealismo” os números diários de casos de covid que a Direcção Geral de Saúde atribui à Madeira foi fulminante.

Primeiro porque desconsiderou o que havia sido dito na véspera pelo responsável pela Unidade de Emergência em Saúde Pública. Maurício Melim admitiu na RTP-M que a discrepância entre os números regionais e nacionais derivou de um problema no SESARAM. “Num determinado momento, não foram notificados, pelo nosso laboratório, os casos”, assumiu sem rodeios.

Assim, surreal é ter culpas no processo de envio de dados, mas optar deliberadamente por endossá-las a terceiros. Ou então esconder informação relevante, tratá-la com ligeireza e evitar explicações a tempo e horas.

Segundo porque ridicularizou a DGS, autoridade que em Janeiro teve o cuidado de alertar o SESARAM para a anomalia nos dados da Madeira e que já fez saber ao DIÁRIO que “foram identificados constrangimentos informáticos na comunicação dos resultados de forma automática por parte de um laboratório, o que gerou atrasos nas notificações, que foram progressivamente introduzidas no sistema, que as assumiu, naturalmente, como novos casos”.

Logo, surreal é a falta de bom senso local e o nervoso miudinho que se instalou desde a semana passada quando a DGS começou a ser notificada dos casos reportados tardiamente.

Terceiro porque acordou tarde para um problema que devia conhecer já que começou em Novembro. Gerou estranheza que só tenha dado pela discrepância nas últimas duas semanas pois, quando deu jeito, nos 11 meses em que a DGS apresentou números bem inferiores “aos únicos fidedignos”, não houve qualquer reparo inflamado. Contudo, percebeu-se haver desespero súbito quando o Turismo é envolvido na equação pela Saúde. Todos sabiam o que haveríamos de revelar anteontem: A Madeira foi classificada como uma das regiões mais preocupantes na avaliação do número de novos casos de covid por 100 mil habitantes que o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças lança todas as quintas-feiras.

Mais uma vez, surreal é a tentativa de boicotar a informação e impedir a transparência, sugerindo que a DGS risque a Madeira dos boletins epidemiológicos diários, para que só a comunicação da Região seja tida em conta. O Governo madeirense não só foi negligente como revelou desconhecer os procedimentos de difusão de dados a nível internacional.

Surreal é ainda haver na secretaria da Saúde gente que confunde perguntas dos jornalistas com declarações políticas. Se incomodamos, e por natureza da profissão desconfiamos de algumas certezas, é porque temos o redobrado dever de informar com total clareza, o que nem sempre tem sido possível por birra de quem está obrigado a dar respostas.

Surreal é também conjunto de absurdos locais que, combinados com alguma arrogância e anomalias informáticas, continuam de facto a ter impactos nefastos na imagem da Madeira.

Contabilidades criativas e engenharias com números são especialidades regionais afamadas e que foram motivo de chacota noutras crises. Essa postura tem rendido punições, mas pelos vistos, quem manda pouco aprendeu com o garrote financeiro gerador de asfixia de efeitos incalculáveis.

O expediente voltou a ser usado em plena pandemia, e isso sim, é deveras surreal, tal como tudo o que tem sido ensaiado com base em palpites. Não é por casos que a Saúde Pública defende medidas mais rigorosas do que o Governo Regional.

Exige-se seriedade na gestão política da pandemia. Portar-se como o vírus, que vai infectando sem aviso, também é letal.