Crónicas

Fotos de cá

Das tias e avós paternas de Márcia Fernandes, chegavam também (a Niterói) e, como tive oportunidade de referir há umas semanas, cartas e fotos. Mencionei então a existência de um conjunto de fotografias enviadas na década de 1960 onde se parece pretender estabelecer uma efectiva co-vivência à distância. É provável que as fotos que o compõem tenham sido enviadas todas de uma só vez da Madeira para o Brasil, parecendo inclusivamente terem sido todas elas “tiradas” no mesmo dia. Tratam atividades típicas da terra de origem, de um universo doméstico, de um quotidiano associado a uma sazonalidade rural. Por exemplo, em duas delas alude-se aos cuidados e costumes associados à cultura da vinha, cultura então caraterística de economias domésticas rurais da ilha. Essas imagens, aqui reproduzidas, parecem formar uma dupla, não exactamente sequencial, mas que ainda assim nos remete para um ‘antes’ e um ‘depois’: o mestre Francisco (marido de uma das tias de Márcia) parece ter bebido vinho para ir podar a vinha da “mãe”, sua sogra / o mestre Francisco ficou bêbedo durante o processo da poda.

Em A Imagem, Jacques Aumont refere-se à capacidade de imagens “não temporalizadas” transmitirem “uma sensação de tempo”. Tal só é possível na medida em que o espectador adivinha essa continuidade: “isso se deve à arché, que, no entanto, só viria a habitá-la porque o espectador a acrescenta a partir de um «saber» que ele dispõe sobre a «sua génese»”. É precisamente esse tipo de arché, de temporalidade sugerida pelo olhar do espectador, que parece habitar esta dupla de imagens aparentemente apenas cómicas. As imagens fixas isoladas, adquirem pois um sentido particular enquanto sequência narrativa.

Num outro retrato, Conceição Fernandes, avó de Márcia e mãe de seu pai Marcelo, surge como que capturada no desempenho das lides domésticas. Podemos ler no verso da imagem: “para vocês queridos verem esta mãe que está ficando de cabelos brancos e sempre com esperança de abraçar a todo / adeus beijinhos para / todos”. Aqui a fotografia age como estratégia de atualização de uma imagem fidedigna de um ‘eu’ ao longo do tempo. E a imagem desdobra-se num apelo ótico — a visão dos cabelos brancos — e hático — a possibilidade de um abraço. Logo, a grande função da fotografia que viaja (porque aqueles que a enviam não podem então viajar), é a de recordar. De recordar num sentido literal, como a etimologia da palavra sugere, para inscrever, para trazer de volta (o outro) ao coração. Desse modo e através dos atos de escrita e postal que as acompanham, estas diferentes fotografias viajantes são mais do que meras memórias de uma vivência de um passado mais ora menos recente. São um meio, como aqui já referi, de co-vivência, que se afirma enquanto memória de um ‘eu’, e de um ‘nós’, construída enquanto tal para o ‘outro’ que está longe. São, nesse sentido, mais do que inscrições do passado, meios de construção duma vivência próxima apesar das vidas à distância. E são conjuramentos para o futuro: servem para enganar o tempo à distância e reiterar a esperança do reencontro quando todas as viagens já estariam feitas.

Nota: o texto da crónica da semana passada continha gralhas, sobretudo ao nível da pontuação, que em grande medida se deveram a um lapso na transcrição do discurso direto de Márcia Fernandes, cujo testemunho é fielmente reproduzido em português do Brasil.