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Um Orgulho Humanista

A justiça tem que averiguar toda a situação e, se for o caso, puni-la adequadamente

Portugal tem, em termos humanistas, uma história algo conturbada a nível internacional. Por mais figuras altruístas que a Nação tenha oferecido ao mundo (o Padre António Vieira e Aristides de Sousa Mendes, para nomear dois dos mais relevantes), o seu contributo será sempre balanceado pela faceta mais negativa da sua história: a “fundação” do comércio transatlântico de escravos, um evento que, segundo várias fontes, contabilizou mais vítimas diretas do que o Holocausto judeu.

A verdade é que a história já está escrita e em relação a ela não há nada a fazer por mais que certos grupos políticos tentem vender a ideia de que os portugueses de hoje têm uma divida material para com os seus contemporâneos africanos. Mesmo assim, apesar de não existir uma divida inerente (além da de cooperação entre países que partilham pontos culturais), há uma dívida universal: a do desenvolvimento do humanismo português. Notícias recentes, todavia, permitem constatar que alguns portugueses se recusam a aceitar e pagar essa dívida ao mundo.

Na passada segunda-feira, Portugal teve conhecimento do desencadear da operação Miríade: uma megaoperação da Polícia Judiciária que se traduziu na realização de buscas e no cumprimento de dez mandados de detenção nos Comandos devido a uma denúncia interna referente às suspeitas de que vários elementos desta força militar estariam envolvidos no tráfico de diamantes, droga e ouro que haviam adquirido no âmbito de operações das Nações Unidas na Républica Centro-Africana. Ou seja, através de uma iniciativa humanitária, ter-se-ia levado a cabo um conjunto de crimes enquanto eram aproveitados certos regulamentos para o encobrir.

Naturalmente que, para alguns observadores, estes crimes podem aparentar ser tão graves como se tivessem ocorrido em Portugal. Só que, quando ocorre em África, este tipo de criminalidade toma outros contornos. Isto porque neste continente é evidente o problema dos diamantes de sangue, isto é, diamantes extraídos de zonas de guerra por indivíduos em situações de trabalho escravo e cuja venda muitas vezes acaba por ser usada para financiar as guerras africanas. É tal a dimensão desta atividade que o próprio conceito, “diamantes de sangue”, já evoluiu para “minérios de sangue”, por já não se cingir apenas àquela pedra preciosa. Neste sentido, além de se destacar a falta de moralidade que é extrair os recursos de um país em via de desenvolvimento sob o disfarce de apoio humanitário, importa lembrar que tanto os diamantes como o ouro traficado são considerados minérios de sangue por terem sido retirados de uma zona de conflito, o que levanta a questão: serão os militares envolvidos nesta nova polémica traficantes oportunistas ou terão eles passado a integrar uma rede de exploração e tráfico das riquezas da República Centro-Africana, tendo-se tornado assim cooperantes na instabilidade que se vive na região? Teremos que aguardar a verificação dos factos e a conclusão da investigação.

Óbvio que a culpa não está nem na ONU nem nos Comandos nem em Portugal enquanto nação. Afinal de contas foram indivíduos na sua capacidade individual que alegadamente cometeram o crime. Contudo, a verdade é que agora, independentemente do que se diga, foram as imagens das organizações e do país que foram afetadas pela ação de elementos que não souberam agir com honra e dignidade.

A situação tem a sua ironia: o que se observa agora é uma réplica do que ocorreu no passado durante o período colonial português – a exploração de terras africanas que, independentemente de ter uma faceta “altruísta”, teve outra muito mais observável associada à dominância e à conquista. Por isso, é inegável que nem todos apuramos o nosso sentido humanista, mesmo que esse seja o caso da maioria dos portugueses. A fim de restituir a sua imagem internacional, o sistema de justiça português tem que averiguar toda a situação e, se for o caso, puni-la adequadamente, devolvendo a ideia de que Portugal orgulha-se da sua Era de Ouro, mas que, mesmo assim, reconhece o que ela teve de negativo para outras nações e que aprendeu com isso.