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O passado a iluminar o futuro

Fazer uma revisão e edição de obras musicais do passado não é tão diferente a acompanhar o crescimento e contribuir para a educação de uma pessoa jovem: sempre vem o momento em que algo que já se tornou parte de nós e em cujo progresso estivemos incondicionalmente empenhados, precisa de “sair de casa”, tornar-se independente e obter a sua própria vida. Foi esse o momento que vivi poucos dias atrás, quando estive a ainda a dar os últimos retoques e a combinar os últimos ajustes com o diretor geral da coleção Antologia da Música na Madeira, já “por cima do sino” no final duma contagem decrescente que começou quase um ano atrás, quando, entre outros colegas professores do Conservatório (que publica a Antologia), fui convidado para editar um volume desta, no meu caso, dedicado à música para piano.

Foi uma viagem de descoberta, tanto da história geral como da sociocultural, sobretudo porque existe pouco conhecimento destes compositores, que tanto deram à Madeira durante a sua vida, seja por terem sido naturais da Região, residentes nela durante algum tempo ou visitantes por razões artísticas ou familiares. Todos eles compuseram obras durante a sua estadia na ilha, sendo muitas vezes, de facto, por ela inspiradas.

As obras que estão a ser impressas nestes dias abrangem um período de três quartos de século, de 1830 a 1905, e as suas características tornam-nas num espelho das preferências, hábitos e costumes da população madeirense da época. O desconhecimento geral da produção deste tipo, hoje em dia, é uma das consequências do declínio do papel social do piano enquanto um dos bastiões da música burguesa deste período. Uma vez que a música de salão se insere, grosso modo, naquela produção artística que muitos consideram ser efémera, a mesma em geral não resistiu à “prova do tempo” e foi rapidamente desvalorizada e desprezada.

Não é, por isso, de estranhar que estas obras estivessem tanto tempo à espera nas prateleiras de várias bibliotecas e coleções. Não é de estranhar que nunca tivessem integrado os planos e programas de aprendizagem de piano, uma vez que se tratava de música bastante marginalizada pelos cânones da tradição erudita. Mas também não se deve estranhar que nós, hoje, consigamos revalorizar o passado e fazer reviver aquilo que nos diz respeito e nos possa ser útil na construção do nosso futuro. Neste sentido, as obras desta coleção podem-nos aproximar ao nosso próprio passado, mas, igualmente, podem proporcionar uma alternativa viável no programa do ensino de piano, e não têm significado apenas na nossa Região, onde representam a nossa herança, mas também a nível nacional, em que podem simultaneamente elevar a consciência sobre a produção artística regional da época e facilitar a integração na história cultural do País.

Alguns destes compositores e as suas obras representam referências de importância histórica.

Entre eles, Nuno Graceliano Lino, professor, compositor e organista da Sé do Funchal, que compôs a sua suíte de valsas “La Maderoise” aquando da visita dos reis D. Carlos I e D. Amélia à Madeira, em 1901, e tocou-a no momento em que os reis estavam a entrar no Teatro (atual Teatro Municipal), tendo no final sido convidado pelos monarcas a ir ao camarote real para receber felicitações. Também o maestro e pianista Ricardo Porfírio da Fonseca, um dos músicos madeirenses mais distintos, cofundador do Clube Funchalense e organista da Igreja Inglesa no Funchal, autor de “Souvenir de Madère” uma suíte de valsas dedicada à então rainha-mãe de Inglaterra, Adélaïde d’Angleterre, e de “The Fashionable Madeira Cotillions”, um conjunto de danças para piano que até chegou a ser publicado em Nova Iorque, em 1830. Igualmente, César Augusto Casella, de origem napolitana, foi violoncelista, compositor e virtuoso com uma carreira internacional, que integrou as orquestras do Teatro S. João no Porto e do Teatro S. Carlos em Lisboa e foi também professor do Rei D. Luiz I. E ainda, Amélia Augusta de Azevedo, que foi uma compositora madeirense que se destacou não só a nível nacional, mas igualmente em França, tendo sido premiada, em 1889, no Concurso Internacional de Música, no âmbito da Exposição Universal, com um segundo lugar e menção honrosa por uma sua peça para piano. Finalmente, Duarte Joaquim dos Santos foi um dos pianistas mais importantes da sua época no Funchal, tendo lecionado num colégio em Londres, onde se apresentou com uma carta de recomendação de João Domingos Bomtempo, tendo sido também professor de piano de D. Maria II, que residiu em Londres em 1828-1829 e em 1831.

Enfim, pessoas distintas cujas carreiras e obras têm a sua importância na história cultural da Região e do País.

Anseio por ver, dentro em breve, o primeiro exemplar impresso deste “bebé”, que será para mim uma das melhores prendas desta época, e desejo-lhe uma vida longa e feliz, nos dedos dos jovens pianistas em toda parte. Feliz Natal e um Ano Novo de esperanças concretizadas!

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