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Crónicas

O despertador nas notícias

A vida dessas mulheres começava cedo, ainda antes de amanhecer. Umas faziam o almoço aos maridos, acordavam os filhos para ir para a escola e outras, como a minha tia Teresa, levantavam-se cedinho para ir buscar pão fresco à venda

A minha mãe arrastava-se para fora da cama às seis da manhã quando o despertador ligava às notícias num relógio digital, com números amarelos, que era também um rádio. A custo, ainda ensonada, abria a porta do quarto para um dia que começava sempre na cozinha, a fazer o almoço para o meu pai.

Os locutores anunciavam guerras no estrangeiro, crises políticas em Lisboa e fechavam com a meteorologia e com céu muito nublado na Madeira. A minha mãe suspirava, que “estes nunca acertam, mesmo que dê leste é sempre céu nublado”, mas não desistia da rádio, nem das notícias, nem de ouvir música. E gostava da RDP por passar o Carlos Mendes, o Fausto e o Paulo de Carvalho.

Enquanto cantava o “Nini vestia de organdi e dançava só para mim” esquecia o que lhe custava acordar cedo e estar no fogão, a fazer um almoço de macarrão com chouriço e a encher a garrafa térmica com café com leite. A minha mãe não gostava de ser só aquilo, dona de casa e bordadeira, mais uma naquela massa de mulheres de meia idade que nos mantinham a todos alimentados, lavados e vestidos.

A vida dessas mulheres começava cedo, ainda antes de amanhecer. Umas faziam o almoço aos maridos, acordavam os filhos para ir para a escola e outras, como a minha tia Teresa, levantavam-se cedinho para ir buscar pão fresco à venda. E outras estavam na paragem à espera do autocarro para ir limpar quartos em hotéis ou embalar banana nos armazéns.

O que vinha pela rádio logo de manhã e o que aparecia na televisão à noite era de outro mundo, sobretudo as actrizes das telenovelas, sempre bonitas e maquilhadas, até quando faziam de criadas ou de pobres. A minha mãe, com o cabelo grisalho antes os 50 anos, espantava-se assim que ficava a saber da idade das artistas brasileiras pela Nova Gente que a minha prima Ana comprava às vezes.

“É da minha idade????”, repetia incrédula, mas no Laranjal dos anos 80 era mais difícil manter uma pele bonita, o cabelo sempre arranjado e roupas da moda e de boa qualidade. A minha mãe não tinha dinheiro que desse para tudo, fazia o que podia para manter uma certa dignidade quando ia ao médico, à casa de bordados, à missa ou falar com a diretora de turma na escola.

As artistas das telenovelas e as senhoras finas com que se cruzava no consultório do dr. Miguel Mendonça tinham outra vida. Não se levantavam às seis da manhã para ir para a cozinha ou para coser botões às camisas de trabalho dos maridos. E não se sentavam logo de seguida, de frente para o candeeiro de braço, e começavam a bordar, enquanto a rádio dizia que o governo em Lisboa tinha caído.

E certamente não se angustiavam com isso ou com a possibilidade de perder as poupanças. A minha mãe preocupava-se, sobretudo com o futuro, o nosso, o dos filhos que acordava para irem para a escola na esperança que tivessem outro modo de viver, menos penoso e que não obrigasse a saltar da cama, todos os dias, às seis da manhã.