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A política da arte (I)

No mês passado abordei o assunto da atitude oscilante das autoridades em muitos países, referente à exclusão dos artistas da Rússia (e, às vezes Bielorrússia) de eventos culturais, tendo por base a nacionalidade do artista e, às vezes, as suas conhecidas (ou declaradas, ou assumidas) ligações ao estado russo e à sua política. Em conclusão a essa história, até o importante Concurso Internacional de Piano em Dublim, que durante várias semanas insistiu em não admitir concorrentes da Rússia, se conformou com as declarações públicas de vários artistas e figuras públicas e com a declaração da própria Federação Mundial de Concursos Internacionais de Música e readmitiu-os. Insiste essa declaração que nenhum participante pode automaticamente ser declarado como representante duma ideologia apenas devido à sua nacionalidade.

Entretanto, numa iniciativa contrastante, foi anunciada a decisão unilateral do torneio em Wimbledon (organizado nominalmente por um clube particular e não ligado ao estado) de não admitir tenistas russos e bielorrussos, por razões conhecidas.

Há quem baseie estas decisões nas declarações públicas dos desportistas e artistas. Há quem se baseie nas ligações manifestas e públicas com os políticos e a política. Há quem peça uma declaração de desvinculação clara da política estatal deste(s) país(es). E há quem nem sequer pergunte, apenas decide taxativamente.

De repente, estamos confrontados com uma pletora de reações neste contexto, algumas ponderadas, outras menos ponderadas, mas todas com o intuito genuíno de declarar e reivindicar uma atitude moral e eticamente coerente, perante a violência e a barbárie que se testemunham no âmbito da “operação militar especial” (deveras um eufemismo – que se define como “figura de estilo com a qual se disfarçam as ideias desagradáveis por meio de expressões mais suaves” – grotesco, por excelência).

O facto é que essa atitude, ou melhor, essas atitudes, não são nem coerentes nem homogéneas e, em muitos casos, são resultados dos interesses especiais. E não só agora, mas ao longo da história. Os exemplos abundam.

Podíamos dizer que a política não tem nada a ver com a arte. É um argumento frequentemente utilizado quando os artistas são escrutinados pela sua envolvência nos eventos do presente.

A verdade é que tanto uma performance de música como o ato de ouvi-la nunca foram atos apolíticos. Mas a ideia de que o possam ser floresceu sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Os exércitos americanos e britânicos solicitavam aos músicos alemães e austríacos que pretendiam retomar a sua atividade o preenchimento dum exaustivo questionário através do qual se determinava o grau da sua cumplicidade política com o regime nazi. Nasceram assim listas “branca”, “negra”, “cinza aceitável” e “cinza inaceitável”. Logo que nasceram, deram azo aos desentendimentos e conflitos. Mesmo na zona americana as “listas negras” tiveram vida curta, uma vez que a responsabilidade de avaliação foi transferida para os tribunais alemães, cujo objetivo foi de retomar a vida musical institucionalizada, por razões económicas e culturais. Assim, os assumidos objetivos morais de “desnazificação” colidiram com as realidades da indústria musical e prática laboral. Os casos notórios, entre muitos parecidos, são os dos maestros proeminentes Wilhelm Furtwängler e Karl Böhm, e da cantora Elisabeth Schwarzkopf, que, dentro de pouco tempo, estavam já a dirigir e cantar pelo mundo fora, não obstante a sua inserção comprovada na “cultura” nazi. O grande compositor Arnold Schönberg, que emigrou da Áustria quando a sua música foi rotulada como “degenerada” pelos Nazis em 1933, disse mais tarde que gostaria que as apresentações das suas obras fossem banidas completamente e para sempre em Viena, uma vez que em lugar nenhum se sentiu tão mal tratado.

Nos momentos críticos dos conflitos humanos, a função da arte nos eventos globais frequentemente é minimizada, ou então exaltada, mas apenas por aqueles que a entendem como uma força para o bem. Insistir num estatuto apolítico da arte é insistir numa utopia que disfarça a maneira como a cultura é implicada na realidade complexa da vida social e política.