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Actual crise diplomática entre Marrocos e Espanha explicada em sete pontos

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O intenso fluxo migratório de milhares de migrantes registado nos últimos dias em Ceuta, território espanhol no norte de Marrocos, é apenas um dos aspectos que está a contribuir para a actual tensão diplomática entre Madrid e Rabat.

Na terça-feira, o Governo marroquino chamou para consultas a sua embaixadora em Madrid, Karima Benyaich, pouco depois da representante diplomática de Rabat ter sido convocada à sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol.

O executivo marroquino não forneceu na terça-feira qualquer explicação sobre tal decisão, mas, segundo frisam os 'media' internacionais, os dois países, que têm sido aliados em várias vertentes nomeadamente na luta contra a imigração irregular, estão a atravessar a pior crise diplomática dos últimos 20 anos.

A crise Madrid/Rabat em sete pontos:

1.º A hospitalização de Brahim Ghali:

O secretário-geral do movimento de independência saarauí Frente Polisário, Brahim Ghali, gravemente doente com a doença covid-19, foi internado em abril passado num hospital da cidade espanhola de Logroño, facto que foi apresentado pelo executivo espanhol como um gesto motivado "por razões humanitárias".

Marrocos considerou na altura que a hospitalização de Brahim Ghali, feita alegadamente com recurso a uma identidade falsa e sem o conhecimento das autoridades marroquinas segundo Rabat, era um ato hostil "premeditado" que não devia ser minimizado. Na altura, Marrocos também advertiu que "iria tirar todas as consequências".

A presença de Ghali em Espanha motivou a convocação do embaixador espanhol em Rabat e a divulgação de dois comunicados com termos invulgarmente duros.

O ministro dos Direitos Humanos marroquino considerou hoje que Espanha sabia "que o preço de subestimar" Marrocos "era muito caro", após decidir acolher o secretário-geral da Frente Polisário, um "inimigo" do seu povo.

A questão do estatuto do Saara Ocidental, antiga colónia espanhola considerada como "território não autónomo" pelas Nações Unidas na ausência de um acordo definitivo, opõe há décadas Marrocos e a Frente Polisário.

2.º A declaração de Donald Trump sobre a soberania do Saara Ocidental:

Quando o ainda Presidente dos Estados Unidos da América (EUA) Donald Trump declarou em dezembro de 2020, a dias de deixar o cargo, que reconhecia a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental, num âmbito de um acordo então promovido pela administração norte-americana que incluía o restabelecimento das relações diplomáticas entre Marrocos (o quarto país árabe a fazê-lo) com Israel, as autoridades de Rabat passaram a exigir que os seus parceiros europeus também alinhassem com a nova posição de Washington.

Os países europeus "devem sair da (sua) zona de conforto", declarou, em dezembro, o chefe da diplomacia marroquina, Naser Burrita, numa referência, segundo o próprio, à decisão da Europa em refugiar-se na neutralidade implícita das resoluções da ONU.

Apesar destas declarações, nem Espanha, nem os outros países europeus, seguiram os passos dos EUA.

3.º O relaxamento da vigilância policial marroquina nas fronteiras do norte:

A chegada de 8.000 migrantes a Ceuta em apenas dois dias, um fluxo migratório de dimensões nunca antes verificadas neste enclave espanhol localizado no norte de Marrocos, é uma consequência do relaxamento da vigilância policial em toda esta região do território marroquino, segundo refere a agência espanhola EFE.

Rabat tem afirmado que o seu dispositivo mobilizado para a luta contra a imigração irregular envolve 13.000 agentes destacados nas costas marroquinas ou junto das fronteiras espanholas.

No entanto, segundo constatou a EFE no terreno, os agentes marroquinos destacados entre Tânger e Ceuta, e na própria fronteira da cidade de Ceuta, limitaram-se a permanecer nos respectivos postos e adoptaram uma atitude passiva perante o descontrolado fluxo migratório registado entre domingo e terça-feira.

A EFE noticiou, entretanto, que a polícia marroquina encerrou hoje a passagem de fronteira de Tarajal, que separa o território autónomo espanhol de Ceuta do reino de Marrocos.

4.º Um ano de fluxos migratórios intensos:

No ano passado, 41.861 migrantes chegaram de forma irregular a Espanha, por via marítima e por via terrestre, um aumento de 29% em relação a 2019, em parte por causa da forte pressão migratória verificada nas Ilhas Canárias (com mais de 32 mil entradas irregulares), segundo dados oficiais.

Nos primeiros quatro meses de 2021, as autoridades espanholas já tinham contabilizado quase 5.000 entradas irregulares de migrantes.

Muitos migrantes procedentes de África encaram Ceuta e Melilla, outro enclave espanhol situado junto à costa marroquina, como uma porta de entrada para a Europa.

Em 2020, um total de 2.228 migrantes optou por cruzar estes dois enclaves espanhóis, por mar ou por terra, muitas vezes correndo o risco de morte ou de sofrer ferimentos.

No ano anterior, o número de chegadas irregulares aos dois territórios tinha sido de 7.899, de acordo com os dados do Ministério do Interior espanhol.

Em Dezembro, Marrocos concordou em aceitar regressos acordados com as autoridades espanholas, deportações essas que envolveriam grupos semanais de 80 migrantes.

Mas o processo foi interrompido em meados de Abril, quando Rabat encerrou o seu tráfego aéreo com toda a Europa.

Desde então, Espanha não conseguiu retomar o ritmo regular de devoluções.

5.º A grave crise social que afeta a região vizinha de Ceuta:

Em Outubro de 2019, as autoridades marroquinas colocaram termo às actividades de contrabando que marcavam o quotidiano e as relações com Ceuta, deixando de um momento para o outro cerca de 9.000 pessoas que se dedicavam a esta actividade sem trabalho e sem meios de subsistência.

A situação agravou-se com o encerramento total da fronteira terrestre por causa da pandemia da doença covid-19, deixando sem emprego cerca de 5.000 trabalhadores transfronteiriços.

Ao longo de 2020, mais de 600 estabelecimentos comerciais encerraram em Castillejos, cidade vizinha de Ceuta, agravando as situações de desemprego e de pobreza.

A maior parte dos migrantes que entraram em Ceuta nos últimos dias vieram de Castillejos e de zonas dos arredores.

6.º A própria situação dos enclaves espanhóis de Ceuta e de Melilla:

O encerramento da fronteira terrestre asfixiou os dois territórios espanhóis no norte de Marrocos, que desde Março de 2020 (devido à crise pandémica) foram isolados do continente e têm apenas a Península Ibérica como horizonte.

O Governo marroquino não deu qualquer indicação de quando pretende reabrir a fronteira.

Muitos observadores em Rabat acreditam que esta reabertura, quando ocorrer, será concretizada sobre termos diferentes.

A chegada em massa de milhares de migrantes a Ceuta em apenas dois dias mostrou a vulnerabilidade desta zona perante uma situação extrema.

Ceuta e Melilla são as únicas fronteiras terrestres da União Europeia (UE) com África.

7.º A visita do primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, aos dois enclaves:

Em 2007, o simples anúncio de uma futura visita dos Reis de Espanha a Ceuta e Melilla causou grande indignação em Marrocos, que na altura convocou o seu embaixador em Madrid para consultas.

Na terça-feira, e perante o fluxo migratório sem precedentes, Pedro Sánchez deslocou-se aos dois territórios espanhóis, visita essa que foi marcada por protestos populares, com o primeiro-ministro espanhol a ser alvo de apupos e insultos.

Até agora, Rabat ainda não se manifestou sobre esta deslocação de Pedro Sánchez.