Crónicas

O Lapo e a Lapa

Diz que este país tem uma Constituição. E que lá vem previsto um direito – e logo fundamental – de “resistência”. Fui confirmar, e é verdade.

Assim é que não

Existe uma aldeia de Astérix na Baixa de Lisboa. É o “Lapo”, um restaurante obstinado e compenetrado como a lapa sua mulher. O Lapo recusa-se a fechar, mesmo apesar do confinamento geral que vigora no Continente desde a meia-noite desta sexta-feira. E porquê?

Diz que este país tem uma Constituição. E que lá vem previsto um direito – e logo fundamental – de “resistência”. Fui confirmar, e é verdade. É o artigo 21.º: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

Respaldadas nestas letras imponentes e sagradas, as portas do Lapo com estrondo para a rua.

Tristemente, só lá deve ir a polícia almoçar. O dono do Lapo pode estar correctíssimo quanto à Constituição. Mas está enganadíssimo quanto ao país. Não me leve a mal. Como admiro a sua linha! A coragem e romantismo do confronto liso e directo, arbitrado por leis justas e eficazes, sossegado por Tribunais rápidos e decididos e por autoridades comedidas. Mas homem, bastava-lhe uma voltinha ao quarteirão para compreender a escala desta sua fantasia.

Ao seu lado, as pessoas fazem pela vida. Há gente a circular, carros a passar, estacionamentos em segunda fila. Há vida de bairro. Está finalmente sol. Isso não conta? Se conta. Cigarros de máscara ao queixo, vadiação, miúdos de liceu deambulando nas tardes que a Covid esvaziou, sequestrados do layoff, reformados, funcionários públicos de soslaio por entre o pequeno logro do teletrabalho. Lojas como os restaurantes, de balcão à porta para o take-away. Quem está aberto de repente vende tudo! Vende Clicquot na tabacaria? Pois concerteza, na arca congeladora atrás dos presuntos, à direita dos iogurtes, é só afastar se faz favor o Limoncello. Há portas do cavalo, que tanto tapume não pode ser normal. Relaxe e relinche, que encontra.

Fale com os seus vizinhos, ouça o que dizem. Não são menos que a internet, os supermercados e a igreja. Já não basta o turismo a estoirar, as grandes empresas em trabalho remoto, o passarinho sem petiscar os dentes do jacaré, agora isto? É preciso defender-se. Quer o contacto de um cabeleireiro, de um cozinheiro para casa? Já leu as excepções do decreto do Estado de Emergência? São umas 30. É escolher, homem! A gente quase imagina os polícias a entrarem, resignadamente, no formidável Lapo, o senhor a servir-lhes um café, a perguntar-lhes se querem mais qualquer coisa, e eles educados, contrariadíssimos: “ouça lá, isto minimamente disfarçado era uma coisa. Agora assim, de peito feito? Tem de fechar. Assim não!”.

Na rua, em suma, ia encontrar a dissimulação, o jogo duplo, e o limiar perverso do cumprimento próprios da chico-espertice, bem mais instituídos e eficazes do que o artigo 21.º da Constituição. Tanto que se pode dizer que o senhor não vai preso por violar a lei, mas antes por fazer pouco das tradições, e com pouco jeito ainda por cima.

Pergunta o persistente dono do Lapo: porque é que esta gente não luta, porque é que esta gente não resiste? Resposta: resistem assim.

Há uma razão para não haver Astérixes nesta terra. O General Galba, pretor da Lusitânia, explicou porquê em carta no século III antes de Cristo: “Existe, nos confins da Ibéria, um povo que não se governa nem se deixa governar”.

Eis os ancestrais termos da nossa relação com o Estado e com a lei: paz perpétua, obediência absoluta, mas comendo-os por dentro como o caruncho. Contra o Império Romano, foi uma poção mágica. Contra Portugal, é meia-bola. E siga.

Mal ou bem, vai seguindo. A pandemia nisto pode muito pouco. Não é que falte compaixão pelos doentes, ou consciência dos agravos do SNS. Elas existem, os portugueses sentem-nas, mas sentem também que o sentimento basta. Portugal leva quase mil anos de mais sorte do que juízo. Pode ser perigoso trocar agora. Aprenda os costumes, homem! Não se sobrevive de outra forma. Muita sorte para o Lapo, e para os Lapos desta vida. É fiando-se no resto que a gente se perde.

O terceiro passo

Timothy Snyder, Professor de História em Yale e herdeiro nessas lides de Tony Judt, explicou os tempos que correm na apresentação do seu livro “Sobre a Tirania: vinte lições do Século XX para o presente”.

Para o fascismo, nada era verdade. O que importava era o mito, o mito de uma nação unida, com uma ligação mística com o líder. É nesse sentido que o populismo autoritário não é inocente, e abre o caminho para a mudança de regime. Se não temos acesso a factos, não podemos confiar uns nos outros. Sem confiança, não há lei, e sem lei não há democracia. Se se quiser arrancar o coração a uma democracia, atacam-se os factos. É isso que os autoritários modernos fazem. Primeiro passo: mentem a toda a hora; segundo passo: acusam adversários e jornalistas de mentir; terceiro passo: toda a gente se pergunta “o que é a verdade? Não existe verdade. Há a minha verdade e a tua verdade. Vamos contar espingardas e ver quem ganha”.

Aí, o jogo acaba e a resistência torna-se impossível. O mito oficializa-se, é integrado no Estado, onde monopoliza a violência que reserva aos seus descrentes.

Não gostei da campanha presidencial. Vi um sistema político envelhecido, conformista, subentendido, tacitamente apologista do abastardamento institucional, da irresponsabilidade, da vaidade do mando, empenhado na manutenção de uma hierarquia revolucionária cansada, que só beneficiou a geração que nela continua. Tudo corroborado, por exemplo, pelo episódio tão lamentável quanto inconsequente da nomeação do procurador europeu, e pelos recuos e atropelos da comunicação pandémica. É isso que Marcelo representa no recato da sua ambivalência. Prefere a combinação aos contrapesos, a trama ao debate, o bastidor ao pluralismo. Talvez seja a sua ideia de estabilidade política, e nisso talvez o Professor seja um homem do seu tempo. No entanto, sem autocrítica e aspiração de reforma, o sistema converte-se num mito de si mesmo, e numa presa para mitos concorrentes. Não estamos ainda no terceiro passo. Mas cedemos demasiado território. E merecemos melhor.

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