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E fomos felizes nesses domingos (À memória do meu pai)

Era tudo diferente nos domingos em que ias comprar cigarros à Vitória. Já não me lembro se era Magos ou Bingo Grande, mas era bom correr atrás do Duarte com o coração na boca e cheia de medo dos carros. O Duarte era doido, tão depressa estava em cima do muro como a meio do caminho e eu não tinha pernas para o defender de ser atropelado.

Mas lá ia, uns passos atrás dos homens mais importantes da minha infância, enfiada naquelas botas ortopédicas e nas blusas de colarinhos grandes. Não sei se eram blusas ou camisas, sei que o segredo estava na forma de abotoar, que era diferente para as mulheres. Talvez fossem camisas, a mãe gostava de nos vestir de igual como fazem aos gémeos.

Uns gémeos de fingir, com o mesmo modelo de cabelo e o mesmo entusiasmo atrás do pai, que ia comprar cigarros à Vitória, aquela tasca com balcão alto, a única que abria ao domingo e onde a rapaziada jogava matraquilhos. Lembro-me dos toques na bola e dos gritos e de pisar as cascas de amendoim que forravam o chão. Às vezes compravas uma laranjada para os dois, para beber pelo gargalo. Eu atrapalhava-me e o Duarte só bebia depois de passar o dedo, a ver se não tinha partido.

Acho que gostavas de nos levar, assim, ainda com a roupa da missa e da catequese, com os cabelos a cheirar a champô Foz, os teus filhos: a menina morena e o rapaz travesso. E rias como um perdido, enquanto me preocupava com os carros que faziam a curva no Jamboto, com o meu “Duarte, Duarte olha o carro”. Eu não podia perder o meu gémeo de fingir, o mano, que tu eras grande, tinhas juízo e não andavas a meio do caminho a desafiar o perigo.

Tu estavas, aí, para me defender de tudo e até das minhas falhas. O chichi na cama era porque tinhas feito mal o quarto e às vezes chovia dentro. E se fazia tudo à pressa era por ter nascido com o espírito das rolas, que fazem os ninhos nos ramos mais altos e os deixam à mercê dos rigores do tempo, “mas as rolas nascem sempre bonitas”, concluías com a ternura que só os pais têm.

O melhor daquele passeio para ir comprar cigarros era voltar para casa, eu uns passos atrás, as botas ortopédicas e as meias de renda de algodão não ajudavam a acelerar um passo. Tu mais à frente, alto, direito e novo e o Duarte em cima do muro atrás das lagartixas e na curva a porta do caminho que, nesse tempo, era preta e branca. Eu sabia que, na mesa da cozinha, a mesa estava posta e a mãe esperava por nós, para aqueles almoços de galinha guisada e gelatina de morango de sobremesa.

E lembro-me de que, nesses domingos, fomos felizes.

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