Crónicas

O legado

O frio chega aos ossos aqui na velha casa do Laranjal, sempre foi assim, mas eu habituei-me depressa ao clima morno da cidade, ao T1, onde vejo o mar e oiço o rumor das ondas em dias de mau tempo. Os meus 90 metros quadrados de paz, que o meu pai acha pouco. Ele é daqui, deste frio, da casa com quintal, fazenda e galinhas, mais um cão que dorme aos pés, enquanto conta os carros que passam no caminho.

Não é um palácio, já se vê as costuras de anos de uso nos pedaços de cimento que faltam nos muros e, nas paredes, a tinta desvanece ao sol e à chuva, mas ele orgulha-se do que fez: “foi tudo o que consegui”, disse uma vez, quando estávamos os dois na paragem do autocarro. E eu imagino-me daqui por 30 anos, não sei se terei um legado. O meu pai tem, é esta casa, este lugar onde se sente pronto para o que se aproxima.

É um homem realizado, que enfrentou a vida como soube e que, todos os dias, me mostra que a coragem tem muitas formas, a maior talvez seja esta de enfrentar a doença, a idade e não ter medo de dizer que o futuro é o instante que passa. A tarde em que vemos as notícias, os documentários sobre os leões nas savanas africanas e todos os almoços e lanches que temos, juntos, comigo a perguntar 50 vezes se está bom.

Eu não quero falhar, é o meu pai e é também o homem que me ensinou a procurar no céu o “Carreiro de São Tiago” e a ouvir o mar num búzio, que subia a vereda dos Prazeres para chegar a tempo de me ver crescer e que me deixou voar para Lisboa, tão vaidoso por ter uma filha com estudos. O mesmo homem que chorou para dentro quando fiquei doente e que me ensinou tudo sobre como ficar de pé de frente para a dor, a perda, o desgosto. No fim, é preciso vestir a melhor roupa, pentear-se e aguentar.

E, no fim, é preciso escolher o importante, o que conta, o que tem mesmo valor. Não fomos sempre perfeitos, nem eu, nem ele. Tivemos afastados, distantes, guardamos alguns ressentimentos durante muito tempo. As pessoas são assim, perdem-se em insignificâncias. O meu pai e eu também percorremos esses caminhos até ficarmos frente a frente perante a última oportunidade de sermos o tínhamos sido sempre: pai e filha.

De uma certa maneira eu voltei a ser a miúda que corre atrás do pai para todo o lado e ele voltou a ter a filha, a menina a quem ensinou que o mundo é mais do que se vê, nele cabe o que se sente, o que está no coração, o que se imagina, o que se pensa. E nisso, neste laço que atámos os dois, tivemos muita sorte.

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