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A peste da indecência

Num sentido ou noutro, já todos somos vítimas do SARS-CoV 2, estejamos infetados ou não

Após os eventos da manifestação de sexta-feira passada, poucos ergueram a sobrancelha em relação ao rumo que levaram os protestos dos trabalhadores da área da restauração no Porto perante a obrigatoriedade do fecho, das 13 horas de sábado às 8 horas de domingo (as horas que forneceriam maior lucro a este sector do mercado), de todos os estabelecimentos deste tipo.

Apesar de todos concordarmos com o princípio de que a violência é uma forma ilegítima de alcançar objetivos, poderemos realmente censurar de forma absoluta os atos de gente desesperada perante a negligência do Estado que, ao invés de ter em atenção as suas necessidades, limita de forma relevante os seus meios de sobrevivência? Claramente que não. Esta, a restauração, é um sector entre vários (como o da Cultura) que começa a ver a extinção na linha do horizonte. Enquanto isso, o ramo governativo apenas demonstra preocupação no combate ao coronavírus a todos os custos, deixando pelo caminho aqueles que se veem mais afetados pelas medidas tomadas para esse efeito.

Surgem também aqueles que, novamente, desejam o confinamento total pensando, ingenuamente, que as consequências económicas das medidas de seguranças decorrentes do coronavírus se irão limitar a um ou dois sectores de mercado e que os restantes, por ordem divina, se manterão intocados. De um momento para outro, perdeu-se a ideia da interdependência entre os diferentes sectores económicos, quando é perfeitamente possível (para não dizer provável) o surgimento de um efeito dominó na devastação económica destas áreas de trabalho, pensadas como “não essenciais”, que afetará a economia nacional num todo. Já lá vão os tempos em que se pode trancar um distrito contaminado condenando as pessoas que lá moram e acreditar que as consequências acabarão ali. Este não é o nosso cenário nem de um ponto de vista económico nem num ponto de vista virológico. Num sentido ou noutro, já todos somos vítimas do SARS-CoV 2, estejamos infetados ou não.

Na sua obra La Peste, o Nobel da Literatura Albert Camus, comenta em relação a uma pandemia fictícia, que “a única forma de combater uma peste é com decência comum” e nunca estas palavras ressoaram tão alto pela sua ausência como agora. Obviamente que o escritor não se referia a pedir com cortesia que o vírus se retirasse, referia-se sim a que cada elemento da sociedade agisse da forma que devia, como por exemplo, no que toca à presente situação, deveriam os médicos cumprir fielmente o seu juramento hipocrático, os civis adotar os cuidados adequados e o Governo, efetivamente, governar. No cumprimento destes ideais não seríamos heróis, seríamos “decentes”.

Nos dias que correm, o que se observa é a exata violação desta ideia. Não há decência nem no lado que age negligentemente a passear sem máscara porque não acredita na pandemia nem no lado que se recusa a aceitar que o coronavírus não é apenas virológico, mas também económico e social (lado em que se insere o Governo). E tal como o corpo exibe sintomas de COVID-19, também a sociedade, enquanto organismo, o faz através da falência da economia e do surgimento de violência em manifestações que se esperavam ser pacíficas.

No final de contas, não há decência por parte daqueles que não sentem a pandemia porque, como não a identificam nas suas diferentes facetas, agem como se não existisse para lá das estatísticas e das medidas com que somos bombardeados diariamente. Neste momento, vivemos num clima de insegurança e mais que nunca ambos os lados desta discussão têm de chegar a um consenso, visto que, como tem vindo a ser reportado, nem as medidas governamentais se adequam às necessidades económicas/sociais de certos setores económicos, nem a prática do business as usual permite responder às necessidades de saúde exigidas no combate ao coronavírus e na preservação da vida humana. Porque, como diz o velho ditado, “não morremos da doença para morrer da cura”.

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