O lince ‘Bores’ terá sido vítima de tráfico internacional de animais selvagens e ameaçados de extinção?
A atribulada história dos últimos 30 dias de vida do lince ‘Bores’ tem sido amplamente difundida, quer através de versões parciais, emotivas e apaixonadas nas redes sociais, como também sob a análise mais objectiva por parte dos órgãos de comunicação social regionais. E não há dúvidas de que o animal teve um final de vida sofrida e infeliz por razões que o DIÁRIO descreve num trabalho jornalístico desenvolvido em duas páginas na edição impressa desta quinta-feira. Mas o pouco que se conhece sobre a vida e morte de ‘Bores’ remota a 3 de Julho, quando a GNR comunicou a apreensão do lince detectado ilegalmente numa casa no Funchal. E quanto ao passado do ‘Bores’? Foi ou não traumatizante? As autoridades de controlo alfandegário terão sido condescendentes com a entrada na Madeira deste que é considerado um animal exótico? O veterinário que prestou assistência ao animal, tal como a detentora, estariam efectivamente a proteger o lince ao manterem sigilosa a sua domesticação? Focando a nossa análise na questão vital do bem-estar animal: Os dias seguintes à apreensão foi a única experiência traumática pela qual o ‘Bores’ passou? Na sua infância não terá sido vítima de uma rede de tráfico de animais selvagens e ameaçados de extinção, conforme o tipifica o regulamento comunitário válido no nosso País? E o seu transporte até à ilha?
Um leitor do DIÁRIO distancia-se do apaixonante frenesim em torno dos últimos dias da vida e morte do lince e coloca o ‘dedo na ferida’, questionando a origem do mal. Afinal como se permitiu que um animal selvagem e com estatuto de protecção determinado por directiva União Europeia entra numa ilha como a Madeira e por cá permanece durante vários anos numa situação de ilegalidade sem que ninguém o tivesse reportado?
“O cerne da questão, como foi possível entrar esse lince na Madeira? Se encomendamos alguma coisa legal pela NET, somos logo taxados pela Alfândega, um lince ninguém vê. Talvez o Alberto oculista resolva o problema”. Comentário anónimo no dnoticias.pt
Efectivamente, o ‘Caracal caracal’, mais conhecido com lince do deserto, antes de ser o ‘Bores’ que todos passamos a conhecer, é um animal selvagem com estatuto especial: em vias de extinção. E sendo uma espécie exótica rara, aguça o apetite das redes criminosas internacionais que se especializam a actuar em países cujos regimes jurídicos e métodos de fiscalização são mais permeáveis para capturar estes animais em estados juvenis, com o objectivo de mantê-los em cativeiros clandestinos de domesticação para depois vendê-los. A meta é o lucro.
Precisamente para combater o tráfico de animais selvagens com estatuto de espécies protegidas e em vias de extinção, foi aprovado a 15 de Maio de 2023, em Bruxelas, o Regulamento (UE) 2023/966, da Comissão, que altera o Regulamento (CE) n.º 338/97 do Conselho, reflectindo no documento as alterações adoptadas na 19.ª sessão da Conferência das Partes na Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (CITES).
Também conhecida como Convenção de Washington, a CITES, é um Acordo Internacional ao qual os países aderem voluntariamente, envolvendo actualmente um total de 183. O objectivo é o de “assegurar que o comércio de animais e plantas não ponha em risco a sua sobrevivência no estado selvagem”.
Para tal, a CITES atribui diferentes Graus de Protecção a cerca de 5.800 espécies de animais e 33.000 espécies de plantas, inscritas em três Anexos (I, II e III) consoante o Grau de Protecção, sendo que a União Europeia possui regras mais restritivas do que as indicadas pela Convenção, regendo-se por um Regulamento que distribui as espécies em quatro Anexos A, B, C e D.
No anexo III B surge a família dos linces. Não só está inscrito o Caracal caracal, também conhecido como lince do deserto (apenas a população da Ásia; as restantes populações são incluídas no anexo B), como também o lince europeu e lince ibérico.
Voltando ao apaixonante caso do ‘Bores’, é certo que o animal não nasceu na Região. O passado do lince do deserto assim como a respectiva cédula de registo têm sido mantidas em total sigilo por parte da detentora do animal, tal como pelo médico veterinário que prestou assistência. E até ao momento, nenhum demonstrou disponibilidade para esclarecer estas questões ao DIÁRIO.
Quanto ao passado do lince, desconhece-se se o animal foi capturado ou se nasceu em cativeiro. Existem centros de reprodução em cativeiro de animais selvagens com estatuto de protegido ou em vias de extinção, contudo, tais procedimentos são enquadrados legalmente. No caso do lince ibérico, a reprodução em cativeiro está integrado na Estratégia Nacional de Conservação do Lince Ibérico, com supervisão da Comissão Multilateral, estabelecida em Novembro de 2006 como uma extensão da original Comissão Bilateral do Ministério do Meio Ambiente e da Junta de Andaluzia.
No caso do ‘Bores’, sendo um lince do deserto, pode ter sido capturado, retirado do seu habitat natural e forçado a abandonar o seu modo de vida selvagem. Contudo, tal só pode ocorrer em situações muito excepcionais, nomeadamente se estivesse em risco de vida, em caso de doença ou morte da progenitora. Em todo o caso, seriam sempre introduzidos em programas de promoção da diversidade genética da espécie, a fim de proporcionar mais chances de novos cruzamentos e de sobrevivência. Neste circuito que se pode considerar legal, a venda a particulares está proibida devido ao estatuto de espécie selvagem protegida e a entrega para domesticação tem de ser fundamentada e obriga a acompanhamento por parte das autoridades, o que nunca poderia processar-se na clandestinidade.
Sabe-se que o ‘Bores’, sendo um animal selvagem com estatuto de espécie protegida, foi mantido clandestinamente durante 6 anos numa casa no Funchal pela proprietária que o ‘adoptou’ e tratou-o como se fosse um cão, um gato ou outro qualquer animal de companhia. Durante esse período nunca faltou a devida assistência veterinária ao felino, contribuindo para o seu bem-estar.
“Veterinário tem por dever ético OBRIGAÇÃO de tratar qualquer animal ... dar conhecimento de eventual ilegalidade é questão totalmente à parte. Um humano ilegal/clandestino é atropelado ... recusa-se assistência médica?... ou é tratado sem discriminação e à posterior denuncia-se ilegal/clandestino?!” Comentário anónimo no dnoticias.pt
Contudo, quer a detentora como o médico veterinário faltaram à obrigação legal de reportar a posse ou detenção do animal às autoridades, expondo-se à possibilidade de vir a ser alvo da acção de fiscalização e de ver o lince ser apreendido, como viria a acontecer.
No dia 3 de Julho, a Secção de Investigação Criminal da GNR juntamente com elementos do Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente (SEPNA), apreenderam o lince do deserto (Caracal caracal), no concelho do Funchal, detectando que uma mulher, de 38 anos, detinha um animal de espécie protegida em situação ilegal, motivo que levou à sua apreensão.
A própria GNR esclarece que a acção teve com o objectivo “a protecção de espécies da vida selvagem com o intuito de prevenir, detectar e reprimir situações de tráfico, exploração, comercialização e detenção de espécies protegidas em cativeiro”. Todo o processo de sedagem do animal foi absolutamente atribulado, conforme de resto já explicamos na edição impressa.
Assim, consideramos verdadeiro que o ‘Bores’ foi vítima de tráfico de animais selvagens com estatuto de espécie em vias de extinção. Sabe-se que o animal é proveniente da Rússia e que viajou para a Madeira há cerca de 7 anos, numa idade juvenil. Como conseguiu escapar ao controlo alfandegário fronteiriço, conforme questiona o leitor do DIÁRIO? Terá havido condescendência por parte das autoridades, sobretudo os serviços veterinários que operam no controlo da fauna exótica que chega por via aérea ou marítima à Região? Terá o lince do deserto sido declarado por um médico veterinário como sendo de outra espécie permitida em Portugal (como um gato, por exemplo), abrindo-se caminho à sua domesticação em cativeiro e mantido clandestinamente num domicílio no Funchal? Se foi esse o caso, nunca ninguém duvidou?
Um ‘Caracal caracal’ em estado selvagem vive cerca de 12 anos. Em cativeiro pode chegar aos 17. ‘Bores’ morreu com 7… O crime não compensa.