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Numa madrugada de 2002 nas andanças do radioamadorismo, tropecei pela primeira vez num indicativo pouco comum com o qual estabeleci um breve contacto. Apercebi-me que tinha aportado via rádio à isoladíssima ilha de Pitcairn. Tenho uma atração pelo motim ocorrido nos finais do século XVIII envolvendo o HMS Bounty, um navio da Marinha Real Britânica nas imediações do Taiti, cuja ousada epopeia de insubordinação, terminou na minúscula Ilha de Pitcairn – a única possessão britânica no Oceano Pacífico administrada pela Nova Zelândia – onde os seus atuais habitantes que não ascendem a mais de 50 almas, são na sua maioria, descendentes dos tais amotinados de 1789, com algumas beldades taitianas sequestradas.

Feita esta intestina declaração de interesses, destaco dois episódios relativamente recentes, que abalaram o pátio da nossa quotidiana parvónia, que é o caso do motim político de Sérgio Marques e dos insubordinados marinheiros do malogrado NRP Mondego.

Sérgio Marques faz-me lembrar aquele soldado romano que depois de lutar ferreamente pela glória de Roma, e ter imenso sangue coagulado na sua espada, foi atingido por um sopro divino, uma epifania, que o fez virar como um girassol ao astro-rei em manifesto processo de expurgação e refinamento (faltando apenas desmaterializar-se do vil metal que o coloca, de acordo com a Revista Sábado, no ranking dos mais ricos políticos portugueses). Este novo apóstolo São Paulo, não revelando qualquer novidade, apenas deu espessura qualificada, àquela que é a percepção pública generalizada de que há uma “créme de la créme” que foi beneficiada. Este convertido Paulo de Tarso merecia ser condecorado no 1 de julho, juntamente com os jornalistas do DIÁRIO (não sei se algum deles é agora assessor público), que em março de 2009 foram apedrejados numa qualquer “hora de burro”, quando confirmavam a extração ilegal de inertes na Ribeira do Faial. Podemos ser pequeninos, mas produzimos muito argumento para conteúdos trágico-cómicos. A comissão de inquérito na ALRAM em torno das declarações de Sérgio Marques, só amplificou o anedotário da arte performativa onde temos um bom lote de atores e figurantes.

Aqueles 13 marinheiros do NRP Mondego pouparam Portugal a um potencial vexame. É muito mais honroso insubordinar-se à tutela, do que vir a pedir um desesperado auxílio à marinha russa em plena missão de espionagem em mar aberto da jurisdição nacional. Ser rebocado pela APRAM ou pelo Ministério da Defesa Russo tem distintas traduções. O tal motim encabeçado por Christian Fletcher no século XVIII num navio militar que não tinha motores, geradores e outras tecnologias redundantes do século XXI, foi arriscado, mas o Bounty estava totalmente operacional sendo intencionalmente destruído assim que chegou a Pitcairn. A comédia do desmazelo do Mondego trai grosseiramente a dimensão atlântica que sempre nos notabilizou.

O Estado está paupérrimo, mas não é suposto que falhe no exercício de soberania das nossas águas, quando temos sob a nossa jurisdição e responsabilidade a maior área marítima de proteção total da Europa e do Atlântico Norte. A RAM, sempre tão espevitada em reivindicar meios no quadro autonómico, pendurou o cordofone, e remeteu-se ao sepulcral silêncio.