Crónicas

As lições de abril que (ainda) aprendemos

«A senhora compreende. Compreende, não compreende? Estamos apenas a cumprir ordens. Claro que compreende. A instalação do medo é para o seu bem. É para o bem de todos. Compreende então, não compreende?»
Rui Zink (2012). A Instalação do Medo. Teodolito, p. 14

«O que se deve dizer às crianças sobre o 25 de Abril?» foi a pergunta que fizeram à Violante Matos.

«Tudo. Deve dizer-se tudo.» - foi a resposta que deu, e foi este o mote que abriu a sua intervenção nas jornadas parlamentares do Partido Socialista da Madeira, que tiveram lugar no passado dia 19 de abril e que contaram também com uma intervenção de Luís Osório.

A Violante Matos sabe do que fala. Tem memória do que foi viver sob o domínio do Estado Novo, em que «a repressão sentia-se na rua, a perseguição sentia-se na rua». E ela sabe do que fala porque sentiu-a não apenas na rua, mas também em casa, quando a PIDE a invadiu para tentar prender o marido, Danilo Matos, que passou à clandestinidade. E a Violante sentiu mais do que esse bafo repressivo quando, em 1973, foi levada para Caxias e foi alvo de interrogatórios que só se tornaram menos longos (e de alguma forma menos violentos) quando a filha de 15 meses passou a estar na prisão com ela.

A Violante tem razão quando diz que o medo é a raiz de tudo, é «o grande húmus de todas as ditaduras». Mas o medo também é o grande húmus que mata as democracias, quando o tempo que medeia as votações começa a estar eivado de medo de falar e de pensar, quando as múltiplas estruturas de poder afinam pelo mesmo diapasão e não toleram «a mais pequena pergunta, a mais pequena parcela de contestação». A instalação do medo é progressiva e insidiosa, até colonizar o espírito da maioria – e é aí que se torna possível 41 anos de Estado Novo ou quase 50 anos de hegemonia política.

O perigo de não se contar tudo sobre o 25 de abril às crianças é a relativização de tudo o que nos aconteceu: relativizarmos o subdesenvolvimento, o privilégio de poucos às custas de muitos, as arbitrariedades, os juízos de valor a substituir os factos, as narrativas únicas, os silêncios, os silenciamentos, a autocensura. É a relativização de tudo o que nos pode acontecer; é a reescrita de tudo, é também o apagão disfarçado de comemoração. Este ano, no Funchal, Abril passou a ser assinalado de forma «apolítica», eufemismo para dizer que apenas terá voz quem manda. E a voz que manda ordenou que a cor de Abril deixasse de ser o vermelho dos cravos para ser substituído pelo laranja que tomou também de assalto as cores da cidade.  Abril também passou a ser um torneio de dominó, conjugação de peças iguais onde não há lugar para a diferença ou dissonância. O perigo de não se contar tudo sobre o 25 de abril às crianças é o perigo de se instalar a narrativa de que o 25 de novembro é que é, como se chegássemos à moderação do 25 de novembro de 1975 sem o 25 de abril de 1974. O perigo de não se contar tudo, mas mesmo tudo, sobre o Estado Novo é a possibilidade de não conseguirmos perceber a instalação progressiva do medo, de não conseguirmos ver para lá do medo, de não conseguirmos perceber que somos nós que temos de ser responsáveis pela sua desinstalação.

«A revolução veio vindo depois»
Maria Velho da Costa (1994). Cravo. D. Quixote, p.91

Contar tudo sobre o 25 de abril às crianças é ter fome de futuro – e nas Jornadas Parlamentares promovidas pelo PS-Madeira, Luís Osório plantou exatamente isso quando afirmou que «pensar sobre o 25 de Abril tem de ser um pensamento de futuro».

Não concebo um pensamento de futuro sem ser um pensamento plural, divergente, múltiplas vozes com uma multiplicidade de perguntas. Um pensar curioso, vivaz, ativo, atento. Um pensamento cujo motor seja o que mobilizou Abril em 1974, quando o povo se atreveu a vir para a rua, e quando o povo, pelas mãos de Celeste Caeiro, distribuiu os cravos vermelhos que tinha quem ansiava pelo fim de março.

Tem razão o Luís Osório quando diz que, passados 48 anos, a nossa Região é «o lugar em que os sonhos ainda têm razões para existir». Temos o dever de contar tudo sobre Abril, mas temos sobretudo a sorte de poder ser tudo o que Abril ainda pode cumprir.

Abril pode cumprir-se através de cada um e de cada uma de nós, através da vontade de agir por um outro futuro que não aquele que dizem ser irremediavelmente o nosso. O futuro somos nós que temos o dever de o sonhar e nós somos uma Região ainda por cumprir.

«O que se deve dizer às crianças sobre o 25 de Abril?»

«Tudo. Deve dizer-se tudo.»

Deve dizer-se que lhes cabe também a elas mantê-lo vivo e que são responsáveis por continuar a desejar tudo aquilo que ainda não existe. É que «A revolução veio vindo»…