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A lição da Grande Guerra

Putin é apenas, se dúvidas restavam a alguém, um tirano herdeiro da cultura estalinista

Desde o início da invasão da Ucrânia que a opinião pública sobre a Rússia caiu por terra apesar de que alguns, por cegueira ideológica, ainda tentam defender a legitimidade de Putin enquanto este incentiva o desenvolvimento de “políticas de terra queimada” de forma brutal e desmedida. Perante a verificação formal dos factos pelas autoridades competentes – “formal” porque já é mais que sabida a ocorrência de crimes de guerra –, Putin deverá ser declarado oficialmente como um criminoso de guerra mas só o tempo dirá se será ou não levado a Haia para ser julgado. Contudo, esta reflexão não tem por objetivo debruçar-se sobre os atentados à população civil e sobre a guerra injustificada de Putin, mas sim lembrar que a Rússia não é Putin nem Putin é a Rússia. Putin é apenas, se dúvidas restavam a alguém, um tirano herdeiro da cultura estalinista.

Quando falamos da Rússia e da sua guerra na Ucrânia, falamos em apenas duas partes de três, sendo a totalidade composta pelo povo, que nada tem a ganhar com a guerra e que já manifestou por diversas vezes o seu descontentamento; pelo exército russo, que dia após dia demonstra querer estar do lado errado da história (contrariamente a dois militares sovietas e heróis mundiais, Vasili Arkhipov em 1962 e Stanislav Petrov em 1983, que contra ordens superiores salvaram o mundo do acender da 3ª Guerra Mundial); e por Putin que não se importa de ver o mundo arder para conquistar mais uma nação para aquilo que crê ser o seu império “czaro-estalinista”.

Porque faço questão de realçar esta separação entre Putin e a Rússia? Porque com o escalar exponencial da gravidade da situação na Ucrânia e das atrocidades das tropas russas, também o sentimento de fúria popular internacional virado contra o povo russo na sua totalidade escalou em igual proporção, mesmo que já se tenha tornado óbvio que esta guerra está longe de ser apoiada em larga escala fora dos círculos de Putin. A importância deste resultado colateral da guerra, a fúria internacional contra o povo russo, ultrapassa todos os debates sobre a justiça da condenação de todo um país devido aos atos do seu “líder”. Trata-se, na verdade, de um aviso no sentido de que temos de relembrar uma das lições mais importantes que deveríamos ter aprendido com a imposição do Tratado de Versalhes em 1919 à Alemanha: penalizar nações inteiras e colocá-las em condições de vida injustas em vez de responsabilizar e punir somente os autores responsáveis é o melhor fertilizante para o brotar de novos ditadores-demagogos (no caso da Alemanha, Hitler é disso exemplo).

Infelizmente, a presente situação parece ter sido construída nos moldes da Grande Guerra, provando que, de facto, os contornos gerais da história se repetem para sempre. Devido às atrocidades de Putin e do seu exército, os líderes das comunidades ocidentais, decididos a não se envolver militarmente com a Rússia mas a salvaguardar a democracia ucraniana com todos os meios possíveis, viram-se forçados a optar pela única via disponível: a das sanções ecónomicas que acabariam por atingir toda a população sem qualquer tipo de descriminação. É verdade que estas medidas não podem ser diretamente comparadas em grau às observadas no Tratado de Versalhes, que foram aplicadas a uma Alemanha devastada pela guerra, mas no sancionamento económico da Rússia conseguimos perceber a forma como se pode abrir o caminho para o próximo tirano russo, principalmente quando a opinião popular em relação aos russos também já os empurra para o seu isolamento na comunidade internacional. As medidas económicas tomadas contra a Rússia podem ser consideradas excessivas mas necessárias para impedir a campanha militar de Putin, mas a “alienação” do povo russo deve ser impedida por razões tanto morais como pragmáticas. Importa, por isso, que continuemos a apoiar a Ucrânia no seu episódio de David e Golias e que não julguemos todos os russos à base de um único e dos seus instrumentos e brinquedos (oligarquia e o infame exército russo).