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Premiada ucraniana alerta para risco de narrativa semelhante à Guerra Fria

Oleksandra Matviychuk
Oleksandra Matviychuk

Um dia após receber o Nobel da Paz, a líder do Centro de Liberdades Civis, da Ucrânia, elogiou o trabalho dos restantes laureados, da Bielorrússia e Rússia, e alertou para quem tenta recuperar uma narrativa semelhante à Guerra Fria.

O Prémio Nobel da Paz 2022 foi atribuído sexta-feira a Ales Bialiatski, da Bielorrússia, e às organizações de defesa dos direitos humanos Memorial, da Rússia, e Centro de Liberdades Civis, da Ucrânia.

O Centro de Liberdades Civis foi criado em Kiev, em 2007, para fazer avançar os direitos humanos e a democracia na Ucrânia.

Ales Bialiatski, 60 anos, atualmente preso na Bielorrússia, fundou a organização Viasna (Primavera) em 1996, para ajudar presos políticos e as suas famílias, na sequência da repressão do regime do Presidente Alexander Lukashenko.

A organização russa Memorial foi criada em 1987, para investigar e registar crimes cometidos pelo regime soviético, mas tem denunciado violações de direitos humanos na Rússia.

Hoje, em conferência de imprensa em Kiev, a líder do Centro de Liberdades Civis, Oleksandra Matviychuk, advertiu para os riscos de quem deseja interpretar a atribuição do prémio como uma distinção à "fraternidade de nações".

"Não vemos -- e não devemos ver -- este prémio... como uma narrativa soviética sobre a fraternidade de nações", disse Oleksandra Matviychuk, que acrescentou: "Esta é uma história sobre a luta contra um inimigo comum".

Os comentários de Matviychuk surgem um dia depois de na Ucrânia terem sido expressadas reações mistas à decisão do Comité do Nobel de distinguir os três premiados.

No momento do anúncio, Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê Nobel norueguês, disse que o painel decidiu homenagear "três destacados defensores dos direitos humanos, democracia e coexistência pacífica".

Alguns ucranianos manifestaram o seu ressentimento pelo que consideram colocar a Ucrânia na mesma categoria que a Rússia e a Bielorrússia, cujo território Moscovo usou para travar a guerra em curso contra a Ucrânia.

O conselheiro presidencial ucraniano, Mykhailo Podolyak, ridicularizou a decisão numa mensagem na rede social Twitter, em que considerou que o Comité tinha um "entendimento interessante da palavra 'paz'".

Defensores de direitos humanos bielorrussos e russos estão a "lutar pelos direitos das pessoas em ditaduras", enquanto na Ucrânia, grupos como o Centro de Liberdades Civis estão a documentar "os crimes de guerra dessas ditaduras porque foram disparados mísseis da Bielorrússia e da Rússia contra a Ucrânia", escreveu sexta-feira, também no Twitter, a jornalista Anastasia Magazova.

"Apesar de todos os méritos dos laureados da Rússia e da Bielorrússia, os ucranianos não querem que a luta pelos direitos humanos nos três países seja considerada da mesma maneira", escreveu Magazova, que cobre a Ucrânia para publicações alemãs e ucranianas desde 2014.

Na conferência de imprensa de hoje, Matviychuk rejeitou a tese de que conceder o prémio a representantes dos três países ao mesmo tempo diminui a sua importância.

O prémio, "que pertence a todo o povo da Ucrânia que luta pela liberdade e pela democracia", é um símbolo da luta "pela sua e a nossa liberdade", disse a dirigente, referindo-se a uma frase que era repetida com frequência por dissidentes soviéticos.

"A Rússia ainda não ultrapassou o seu complexo imperial. Isso é uma ameaça. O mesmo que na Bielorrússia, onde (O Presidente Aleksander) Lukashenko entregou a sua terra à ocupação", disse a diretora executiva do Centro, Oleksandra Romantsova.

Romantsova elogiou o trabalho de Bialiatski e do Memorial, que destacou como a primeira organização a documentar crimes de guerra russos durante a primeira guerra de 1994 a 1996 na Chechénia, a região de maioria muçulmana no flanco sul da Rússia que travou duas guerras com Moscovo pela independência.

"Talvez se o mundo tivesse prestado atenção aos crimes de guerra na Chechénia desde o início, não teríamos hoje a guerra na Ucrânia", continuou Romantsova.

O Presidente ucraniano Volodymyr Zelenskiy ainda não contactou o Centro de Liberdades Civis para o felicitar pelo prémio, mas tanto Matviychuk como Romantsova desvalorizam esse silêncio face á guerra em curso.

Era pouco provável que Zelenskiy conseguisse entrar em contacto com qualquer uma delas na sexta-feira depois da divulgação da atribuição do Nobel, disse Matviychuk.

"Não desejo que ninguém passe por uma guerra, mas esse momento complicado dá-nos tempo de mostrar as melhores qualidades que temos, desde o agricultor que protege a sua terra ou trator, até ao Presidente que não foge do país durante a guerra", frisou Matviychuk.