Crónicas

Na sala de espera, entre revistas sem capa e as senhoras da cidade

A maioria diz que não, mas envelhecer não tem grandes vantagens. O corpo como que acorda e, sem se perceber como, há partes que começam a doer; outras emperram e estes factos começam a entrar nas conversas, nas nossas conversas. E falar de dores ou doenças é entrar noutra dimensão, a das pessoas que relatam as consultas, os exames no hospital, as longas esperas sentadas em cadeiras desconfortáveis, enquanto ouvem as tosses e as histórias dos outros.

Duas horas ou três, ali na fila para consulta no antigo prédio da Caixa, faz pouca diferença. As dores e as doenças, além dos incómodos, trazem sempre isto: esperar, olhar para o telemóvel, esperar e ganhar esperança quando se chama mais um e voltar ao assento duro e respirar fundo. E isto foi sempre assim, mas as dores só começaram a chegar agora. A minha memória está, no entanto, cheia de histórias em salas de espera, quando a minha mãe ou as minhas tias me levavam para fazer companhia.

E eu não protestava, era melhor do que ficar em casa. Nos consultórios os sofás eram fofos e macios, havia revistas velhas, algumas já sem capa e muitas conversas cruzadas. Senhoras com o cabelo penteado no cabeleireiro e a minha mãe sem querer mostrar que, lá por cima, no Laranjal, não havia dinheiro para isso. Tinha enrolado em casa, com uma escova velha e o secador, e vestido a blusa de laço e os sapatos de sair. Não se adiantava em pormenores, as senhoras falavam de divórcios e dos netos que estavam a estudar para doutores.

As pessoas não se divorciavam, pelo menos as pessoas que a minha mãe conhecia, e, em matéria de estudos, a minha prima era professora, o meu primo bancário. Tinham empregos bons, mas formar-se médico era outra coisa. E olhava para mim, talvez tivesse cabeça para isso, sem perceber que aquela miúda gordinha e paciente, que se sentava a fazer de conta que lia as revistas velhas gostava mais de ouvir as conversas e medir as pessoas para ver de onde vinham.

No Laranjal era tudo diferente. As mulheres faziam permanentes em cabeleireiros improvisados num anexo; os homens eram mestres, levavam o almoço num termo quando saíam de casa de manhã e voltavam à noitinha, empoleirados na carroçaria de uma furgoneta. E havia muitos noivados desfeitos, mas as mães garantiam que era tudo obra de bruxedos. O Amadeu do Pico dos Barcelos tinha muitos clientes por causa disso, já em 1980 era mais difícil curar um coração partido de que uma dor ciática.

As senhoras dos consultórios da cidade não falavam de bruxedos. A vida moderna era assim, quando não se davam bem assinavam os papéis e ia para cada um para seu lado. E a minha mãe inquietava-se, que não se podia voltar a casar pela igreja, que era estranho ter mais do que um marido, mas isso só depois, quando chegava a casa e fazia o relatório às minhas tias. A gente da cidade tem outra maneira.

Os segundos casamentos, os filhos de pais diferentes confundiam as cabeças habituadas à lei puritana e quase marcial imposta pela minha avó. A dona Alexandrina estava morta e enterrada havia anos e, mesmo assim, vivia dentro das cabeças das filhas, a ditar sentenças: o vestido era muito vistoso, a saia muito curta e o meu muito bom a Matemática não devia ser motivo para demasiado orgulho ou gabarolice.

E era tudo tão diferente entre aquelas mulheres da cidade, tão bem penteadas e perfumadas, sem esconder a vaidade, nem o orgulho nos filhos, nas filhas, nas famílias, que eram sempre grandes, cheias de primos e primos de primos. A minha mãe beliscava-me às escondidas, ficava feio olhar assim, o que iam pensar. Eu sabia bem o que iam pensar: a pequena não estava habituada, nunca vira roupas tão caras, modos tão elegantes, nem sabia que se podia viver de outra maneira e bem diferente do Laranjal. E por isso espantara para elas, sem saber sequer o que dizer quando lhe perguntavam a idade, em que ano estava na escola e o que havia de ser quando crescesse. E lembro-me das reprimendas, que figura à vista de gente, o que diriam, que era de campo? O Laranjal era quase isso, a diferença era que se avistava os telhados da cidade.