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A Palavra e a Mentira

A verdade deixou de ser uma propriedade indispensável na argumentação política

Setembro é tradicionalmente o mês das rentrées, dos “regressos”, do retorno ao trabalho, da reabertura das escolas, tribunais, da retoma à alegada “normalidade” depois das férias grandes… e ele está já aí, mas este ano com uma particularidade: é o mês no qual se realizará mais um ato eleitoral – para o poder autárquico –, justamente aquele que está mais próximo dos cidadãos-eleitores e que tradicionalmente apresenta menos abstenção. Analogamente, é também o mês que assinala o fim de um ciclo político de 4 anos e a altura em que diversos líderes políticos iniciam “voltas” pelo país (ou região) e se dividem entre dezenas ou centenas de iniciativas e intervenções político-partidárias por vários locais/sítios, tudo a pensar na data de 26 de setembro e afiançando que já ultrapassamos a atual pandemia e que seguimos agora uma trajetória de desconfinamento ininterrupto sem nova marcha-atrás!

Ora, se há um ciclo político que termina, aquele que está prestes a iniciar-se desponta, em 2021, com recantados e novos candidatos (não anulando os denominados “dinossauros” do poder local, nada dispostos a abdicar dos órgãos executivos a que presidem), todos eles com discursos pejados de novas ou repetidas propostas (algumas plagiadas, outras já esgotadas e umas tantas bem disparatadas), folgadas promessas, múltiplos ‘empenhos’ e copiosos compromissos – para além de muita pantominice à mistura –, que segundo os próprios são as melhores soluções de futuro, até porque passadas as últimas (e grandes) adversidades, o tempo que se segue será pleno de oportunidades, realizações e até de prosperidade! Já todos percebemos que há agora muitos milhões da bazuca europeia (ou Plano de Recuperação e Resiliência – PRR, aprovado, em julho, pela Comissão Europeia,) para “empregar”, e os políticos asseguram-nos que estes novos e imprescindíveis recursos financeiros vão permitir-nos viver melhor se seguirmos a fórmula, melhor, o candidato (ou partido) pelo qual se apresentam e que devemos eleger.

Por estes dias alguns dos habituais e mediaticamente ‘famosos’ candidatos e líderes aperfeiçoam (e exibem) o seu “dom” (mestria) da palavra (e até a rápida palavra), declaram ser “homens de palavra” (fiéis aos acordos, obrigações, projetos e compromissos assumidos) e num qualquer pequeno debate partidário não gostam que lhes cortem a palavra, para além de prezarem muito dar a última palavra (opinião) sobre um qualquer assunto ou tema mesmo que não o dominem. É também por meio dela que ardilosamente nos iludem, atraiçoam ou embusteiam. Alguns são autênticos peritos (malabaristas) nesta matéria!

Todavia, na atual conjuntura da política local, regional, nacional e até internacional, a representação ou aparência pública do candidato (isto é, a imagem concebida na maioria das vezes pelas máquinas partidárias ou por influentes e dominadoras agências de comunicação) é cada vez mais determinante no tipo de ‘produto’ que se quer oferecer, promover e com o qual convencer o eleitorado. O poder da palavra – e a palavra é essencial ao homem, pois já o legado grego testemunha que ela é “princípio vital” – o ato verbal, a enunciação (que não se confunde com linguagem enquanto faculdade), esse mostra agora perder generoso terreno nos domínios da comunicação, argumentação e discussão política. Hoje, quem quiser persuadir um auditório que é maioritariamente pouco atento e interessado nas lides políticas – que vota esporádica e, nalguns casos, descuidadamente –, parcamente crítico e que está abundantemente configurado pela imprensa escrita e audiovisual (para além de toda a desinformação dispersa nas redes sociais), já não o faz de modo idêntico àquele que se usava no tempo da antiga retórica grega e romana, ou seja, mediante a arte de bem falar de modo a convencer e a obter a adesão dos cidadãos a certas teses (através do exercício da dialética e da tópica). Dito por outras palavras, já não o faz pela ‘arte do diálogo’ e da controvérsia: o método antigo foi vencido e substituído por outro que permite agora melhor seduzir, controlar e ludibriar as massas! Presentemente, a argumentação política está quase reduzida a uma imagem/cartaz (meticulosamente manipulada) do candidato ou partido proponente ao ato/cargo eleitoral, a um outdoor na qual se apensa um pequeno slogan que incita a uma ação eventual (ou imediata e que fomenta a confiança) e o auditório já nem sequer tem de estar disposto a escutar o que quer que seja, basta-lhe ver e ler (por exemplo: “A força que nos une!”, “Cuidar do Futuro!”, “Energia e Competência”, “Novos tempos”, “Todos por todos, mais do que nunca!”, “É possível e eu acredito”, “Pelo direito à cidade”,…). Na imprensa audiovisual, o diálogo ou ampla discussão de ideias/propostas entre todos os candidatos foi substituído pela rápida e ligeira entrevista conduzida por um profissional da comunicação ou, então, por uma espécie de monólogo do próprio candidato que transmite as suas ideias (não manifestando qualquer preocupação em relação às dos outros) e que sobretudo procura a adesão emocional (e não intelectual) ao discurso proferido, muitas vezes preparado (quando não integralmente redigido) por terceiros.

De facto, a vida política muito se alterou nos últimos 2500 anos e nas atuais e modernas democracias os cidadãos “não políticos”, por mais que se propagandeie o contrário, não são encorajados para uma aberta expressão política assim como para uma participação ativa e efetiva na condução da res (coisa) pública. Pior ainda é o facto da falsidade, da mentira, do engano, da fabulação e ilusão constituírem numerosas vezes parte significativa da argumentação política veiculada aos cidadãos, ou seja, serem muitas vezes as premissas/razões apresentadas na defesa de uma tese que pode vir a ser admitida porque é politicamente oportuna, socialmente útil, considerada como “justa” ou tida como equilibrada. A verdade deixou de ser uma propriedade indispensável na argumentação política. O que verdadeiramente interessa é influenciar o eleitorado e garantir a sua adesão (seduzi-lo), isto é, o que importa é conquistar o voto na urna e, como consequência, alcançar ou conservar o poder! Nas vigentes democracias representativas os cidadãos apenas têm poder sobre os políticos durante escassos segundos – e só em cada 4 ou 5 anos – e é nesse curtíssimo período de tempo que ‘avaliam’ a sua prestação ou carisma, isto é, as suas proezas e os seus erros. Os políticos até podem cometer erros durante a governação, isso é tolerável e aceite pelo comum dos cidadãos, mas mentir, isso já é outra coisa! Na atividade política o ato deliberativo de mentir deveria ser severa e juridicamente punido e a democracia só tem a perder quando vive – ou melhor, sobrevive – de mentiras! Enquanto expressão falseada do próprio pensamento, a mentira é algo moralmente reprovável na medida em que desrespeita a exigência da verdade, mas, neste caso, é sobretudo um abuso de confiança por parte de quem a profere e completamente contrária à sã convivência social. Ela é própria daqueles que estão sequiosos de poder e que se afrouxam diante do imperioso apreço pela verdade. Mais: no tempo, ritmo e sociedade “desconcertante” em que vivemos, creio que no espírito de todos nós emerge inevitavelmente a imagem (ou recordação) de alguém que encaixa neste perfil, alguém que ainda consegue enganar muitos (ou poucos) por algum tempo, mas que não conseguirá enganar a todos todo o tempo.