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Nós, (e) os bichos

Tive a feliz coincidência de crescer num mundo relativamente livre de computadores. Não é que não existissem já, mas as enfadonhas caixas de cor bege não eram presença assídua na

casa do comum mortal.

A certa altura passei a usar semanalmente tal maquinaria na aula de informática. Era importante para o meu futuro, insistiam. O objetivo era aprender a domar o bicho aos poucos, através de um e outro desenho no paint e uns quantos textos soltos no word... Os mais atrevidos chegavam mesmo a desafiar a inteligência da máquina, sorrateiramente, num jogo de cartas até serem apanhados em flagrante delito pelo professor.

Não foram poucas as vozes que, em uníssono, alertavam que os bichos tinham vindo para ficar. Que chegaria a altura em que nós, humanos, não faríamos nada sem eles. Que traziam truque na manga e uma malvadez apenas acessível a quem, impregnado de frieza metálica, não tinha veias para correr sangue. O tempo encarregou-se de lhes dar razão e aumentou a quantidade e a complexidade das tarefas que àqueles foram confiadas: longe vão os tempos em que o domínio se alcançava pelo paint e pelo word, é certo.

Realmente, aos poucos, os bichos foram trilhando o seu caminho e revelando a sua verdadeira malícia. Hoje dominam. É como se a vida não existisse fora deles. Seja uma paisagem, uma refeição, uma viagem, uma ida ao ginásio…

Tudo vale a pena e sabe melhor desde que seja publicado. Já dizia o outro: “Isto foi obra dos bichos. Eles sugaram a essência humana para o local da sua existência!”.

Com eleições à porta, as máquinas depuram a malícia. Tenho observado especial requinte na malvadez dos bicharocos, que prolifera nos diversos espaços onde existe uma autoproclamada liberdade, transparência, e onde se difunde uma verdade que se apresenta única e inquestionável… Daquele género de verdades cuja certeza dispensa o anonimato dos corajosos justiceiros, que nem zorros dos tempos modernos, dão ao dedo em prol do bem que por estes tem de ser considerado comum.

Assumidamente casmurro, tenho por hábito questionar a veracidade de tudo o que ali se diz, independentemente de se tratar de elogio, crítica, denúncia ou simples desabafo. Seja como for, em bom rigor, não interessa se é ou não verdade o que naqueles espaços é publicado e partilhado, pois como se sabe o desejo de comentar e falar do que tantas vezes não se sabe é bem maior do que o desejo de questionar, de confirmar, de procurar rigor ou mesmo de denunciar e colaborar com as autoridades competentes.

Face a todas estas evidências, forçosamente concluo que tudo isto é fruto do domínio dos bichos. Realmente, a sua malvadez não conhece limites. Que estes aproveitam a ingenuidade e o bom coração dos humanos, toldando-lhes o raciocínio e a capacidade de questionar o que lhes rodeia, fazendo com que estes tomem por certo aquilo que talvez não o seja, aumentando-lhes o apetite por bilhardice. Revoltado com tudo isto, só queria saber quem é que tem andado a dar ordens aos bichos durante este tempo todo.