Crónicas

Via Crucis - uma revisitação

Naquele tempo, a Sexta-feira Santa era um dia escrito com maiúsculas, levado a sério no seu revestimento de silêncio e dor pelas comunidades cristãs. Estávamos, então, muito longe da trivialidade dos dias de hoje: na sociedade secular, consumista e pós-cristã, este é só mais um dia a compor o ramalhete de um fim de semana longo, pontuado por cabrito e ovos da Páscoa...

Naquele tempo não era assim — e hoje certamente não será assim para muitos crentes. Mas, lembro-me bem desses dias antigos e tão especiais da Semana Santa, quando éramos envolvidos numa espécie de mística do tempo vivido, a fé se desdobrando em liturgias, silêncio e ritos tão envolventes, que acabávamos por ter a compreensão de que algo de verdadeiramente grandioso e maior que nós estava ali a passar-se, e sentíamo-nos convocados de uma maneira afetiva e íntima para o que se costuma chamar celebração da fé.

Naquele tempo da infância, ainda tão disponível e aberto ao sagrado, éramos levados pelos nossos pais para ouvir (e sentir) a Paixão rigorosamente às três da tarde — que, sabíamos de ouvir dizer, seria a hora lancinante do Crucificado exclamar

“Abba, Pai, porque me abandonaste?” Aquele era, entre todos, o Dia Santo, e ai de quem ousasse lançar uma enxada à terra, ou dar-se ao desfrute da bilhardice na vizinhança... Lá na igreja plantada naquele chão de bananeiras e onde pulsava agora o coração da comunidade, percebíamos um luto carregado nos véus das mulheres e nas gravatas pretas dos homens, o silêncio só entrecortado pelas leituras bíblicas e cânticos quase em surdina, a cena do Gólgota próxima e terrível, e tudo exprimia a gravidade do drama, os altares limpos de toalhas e adornos, os santos ainda mais reclusos nos seus nichos e agora tapados pelo roxo do dia — ali só ficava mesmo a Cruz, alta e nua em todo o seu despojamento e escândalo, impossível não vê-la e não seguir a corrente da injustiça e da dor, o Inocente condenado, seguíamos os passos do Calvário e contemplávamos a Cruz, de repente a história toda ali narrada, a desse tempo era também a do nosso, viemos a perceber mais tarde, na altura só atentos e sobretudo confundidos face ao Mistério maior... Na tarde triste daquela Sexta, o destino do Homem de Nazaré ligava-nos a todos, tomávamos a sério as suas dores, pelas humildes paredes do templo ressoavam ainda os trovões daquela tarde terrível e víamos outra vez — maravilhosa narrativa da Paixão —, transidos de pena e de medo, toda a coreografia daquela hora negra em que o Crucificado arcou com as culpas de todos e, no sangue derramado, foi liberto do reino da morte pelo Deus que, desde então, tratamos por Pai.

Lembro-me — o lugar da infância devolve-nos sempre nítidas memórias — de passear a atenção pelos painéis de azulejos da capela-mor, intensos no seu realismo, via-se que “aquilo” tinha sido uma coisa séria, era o que nos diziam aqueles esgares dos verdugos, mais a tortura dos pregos e da coroa de espinhos: como era possível um homem resistir a tanta dor? Mas, com os anos, o tempo da infância a ficar para trás, fui dando mais atenção ao “Noli me tangere” pintado em belas cores lá no teto da capela-mor, era já a Madalena com o Ressuscitado, percebi depois. E, mais tarde ainda, vi que estava tudo ligado, dos Ramos à Páscoa brotava a unidade essencial da Fé, mas havia que passar pela Cruz, a Ressurreição implica a história, a d’Ele e a nossa, em toda a Via Crucis a condição humana nua e crua, exposta sem mais palavras nem floreados, pura encarnação, as trevas antes da Luz prestes a despontar, que iria trazer então uma alegria muito pura, de hossanas e flores, os círios todos acesos, o perfume do incenso a inundar o templo, era já o grande Domingo: alegres roupas coloridas, cânticos em uníssono e o tilintar das campainhas — quase palpável, o júbilo de um renascer, o insondável da graça na vida nova do Ressuscitado!

Anos mais tarde, veio a tradição chamada do “biblioscope”, não havia Semana Santa sem um grande tema bíblico em versão technicolor, ou sem que aparecesse um Jesus nado e morto em Hollywood, naquela versão romanesca do hebreu meio ruivo e de olhos azuis, belo demais para morrer de verdade: honrosa exceção para o filme do “ateu” Pasolini, um Cristo forte e puro no seu despojamento profético, só olhar e palavra, gumes afiados no verbo do Verbo, “O Evangelho segundo São Mateus” em toda a força poética do “preto e branco”, sem truques nem apologética barata, apenas interpelação às consciências, palavras tão incompreendidas e incómodas, hoje como naquele tempo...

A memória e a atenção crente ligam todas as coisas: o hoje do sofrimento global recria sem cessar o tempo velho da injustiça, do pecado e da morte. Como diz Leonardo Boff no seu magnífico ensaio cristológico “Paixão de Cristo, Paixão do Mundo”, há que entender que Jesus não morreu “na cama”, mas foi condenado e crucificado pelos poderes imperial e religioso, ambos de mãos lavadas para condenarem o Inocente. Pilatos apresentou-O ao povo dizendo “Eis o Homem” e, pelo tempo adiante, a Sua morte é um libelo atirado à perfídia do mal, que desde sempre tem na história grandes protagonistas. A Cruz condensa a maldade, mas também a redenção: ela não elimina o mal, mas faz-nos aceder à liberdade liberta, acolher a graça e o dom e, para lá do desespero, descobrir um sentido para a esperança humana — que é sempre, Via Crucis, uma esperança crucificada!