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Uma janela de esperança

Não é tarefa fácil viajar no meio desta espécie de labirinto onde nunca se perde o sentido do homem

Vale a pena voltar à esperança. A esperança vem de ser autêntico, de não nos deixar dominar por ansiedades, de estar convencido de que o nosso papel neste mundo é criar futuro para mim e para os outros, porque a esperança é tornarmo-nos criadores de futuro. É claro que há sombras densas diante de nós e existem muitas razões para esta sociedade depressiva, mas isso não nos pode dominar e vencer.

O maior roubo que se pode fazer a alguém é tirar-lhe a esperança. Cuidado! Este tempo de competição e consumismo, do culto das aparências, é muito propício a comparações, é fácil alguém sentir-se marginalizado, sem sentido nem futuro. E neste caso quem roubou a esperança foi a mentira, a ilusão de que se é feliz com o ter, com o ganhar, com o êxito. Essa é a publicidade enganosa!

O nosso mundo tem falta de esperança, ou então vive de sebastianismos, de soluções que caiem do céu, de expectativas projectadas. Mas isto nada tem a ver com a esperança! Esperança não é ficar na sala de espera, é dizer: “Vale a pena arregaçar as mangas!”, é a força de sair de si, é criar algo que valha a pena, é ter fé em que é possível construir um futuro melhor e mais justo, é comprometer-se… Não fosse a democracia o regime do compromisso e da moderação.

Há textos que merecem ser lidos por todos, mesmo que à primeira vista se não entenda tudo por causa de uma esperança que ilumina os fios da história que parece em ruptura.

Atrevo-me a propor, como desafio, a leitura do discurso de vitória de Marcelo Rebelo de Sousa depois da eleição para o segundo mandato como Presidente da República no qual prometeu que será o mesmo e, como há cinco anos, cumpre um dever de consciência.

“Portugueses, hoje, em dados reportados ao dia de ontem, o número de infectados é de 11.721”. Por momentos, deu a sensação de que Marcelo se tinha enganado no discurso de vitória. Mas o Presidente procurou aproveitar as suas primeiras palavras para dar um sinal de que é preciso voltar à realidade, como se no dia eleitoral, os discursos dos candidatos, os comentários dos analistas fossem um hiato de evasão no meio da realidade da pandemia. Perante este choque inicial no discurso, todo o folclore eleitoral perdia sentido. Vivemos uma catástrofe sanitária e económica. Ao subir ao palanque da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Marcelo era um homem assumidamente só - O recinto escolhido para agradecer a enorme votação dos portugueses, sem bandeirinhas, apoiantes, familiares, amigos ou qualquer sinal de festejos, ostentava o décor da pandemia: lúgubre, frio, confinado e distanciado. E quem discursou não foi o candidato vitorioso mas o Presidente preocupado. Embora pareça estar para lá da política, a pandemia terá uma importância crucial na relação institucional.

De facto, são três os desafios centrais do imediato e dos próximos anos no contexto interno: superação da pandemia, recuperação económica e social do país, gestão política num quadro de governo minoritário.

O primeiro continuará a ser a preocupação número um de Portugal, infelizmente por tempo indeterminado. O segundo desafio, a recuperação económica e social e a conexão das desigualdades que a pandemia tem aumentado, implicará um esforço conjugado de todos os sectores da sociedade. Por fim na gestão política, o seu papel será determinante.

Mais do que meditação ascética ou resto de sebenta duma aula longínqua este discurso de Marcelo é como uma tenda onde todos nos podemos albergar, fatigados de caminhos percorridos e temerosos pelos que há a percorrer. Raramente um discurso político tem uma dimensão tão profunda, humana, próxima, interessante, sem deixar de ser subtil e fraterna. Marcelo envolve-se na nossa aventura de fé recheada de perguntas mas com uma saída muito para além dos trilhos convencionais da doutrina e das exortações. Parece que uma plêiade de homens e mulheres foi evocada por ideias profundas e próximas, mitológicas ou reais, divinas e humanas.

Não é tarefa fácil viajar no meio desta espécie de labirinto onde nunca se perde o sentido do homem, da história da fé e de Deus. Sempre com a espada da palavra no corte certeiro de cada indecisão. Estranhos autores, exemplos raros, citações surpreendentes, numa aparente complexidade reservada à leitura de poucos. Mas um texto que merece ser lido por todos, mesmo que à primeira não se entenda tudo. Há de premeio chaves da vida, da morte, da fé, tudo por causa de uma esperança que ilumina os fios da história que parece em rotura.

Ninguém fica de fora porque não há nada lá que não diga respeito à vida de cada um de nós. E à morte. É a luz perpetua como estrela sobre as nossas frontes. Exacto. É uma luz plural. Ninguém possui, só. Ninguém peça sozinho. Ninguém se salva sozinho. Continuamente entra na minha existência a vida dos outros: naquilo que penso, digo, faço, realizo. E, vice versa, a minha vida entra na dos outros: tanto para o mal como para o bem… A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança também para mim. Como cristãos não basta perguntarmos: como posso salvar-me a mim mesmo? Devemos antes perguntar-nos o que se posso fazer a fim de que os outros sejam salvos e nasça também para eles a estrela da esperança.

Marcelo é o amigo de longa data, o companheiro das lutas políticas, o académico que me influenciou de forma constante na busca da verdade.

Se o individualismo ou a resignação podem ser formas de morte, a amizade é vida, condensação de afectos marcados pela reciprocidade, numa trama de relações que podem multiplicar-se. Cultivar os amigos mais íntimos é essencial, mas também procurar formas mais expansivas de amizade. Não apenas os mais próximos, mas com os estranhos, produzindo novos vínculos, num projecto de convivência.

A política não passa só por eleições, disputa ou divisão de poderes. É também a construção de novos modos de vida, formas de estarmos juntos, alargando o político para todo o corpo social, fomentando a cultura do encontro, por mais desencontros que vamos encontrando pelo caminho. Foi isto que nos disse Marcelo Rebelo de Sousa durante o primeiro mandato. Será isto que o Presidente reeleito veio a confirmar que será a sua postura neste segundo mandato como reafirmou na noite de 24 de Janeiro na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Na posse deste segundo mandato, na próxima semana, estou certo que Marcelo não deixará de nos propor a Esperança como o grande horizonte para além dos horizontes, certeza para além das hipóteses, plenitude para lá das estreitas métricas, a chave para o entendimento da história e o ímpeto para prosseguirmos viagem. Sem esquecermos que a esperança também somos nós. Que fazemos, alimentamos, muito para além de sentimentos ou pressentimentos ocasionais. Na certeza do nunca alcançável em pleno, enquanto andamos por cá.

Por isso se precisa mais de quem aponte caminhos e semeie a esperança, do que profetas azedos que se divertem na sua literatura de cordel semeando crispações e proclamando liberdades à sua medida.

Os portugueses são chamados a uma leitura serena e sábia da história, mas também à ressurreição de todas as mortes que vão acontecendo. Nada adianta ficar a chorar junto à pedra do túmulo. Importa rola-la para entender que a ressurreição acontece em todo o processo redentor.