Crónicas

E o vírus sem Natal

E lá entrámos outra vez em confinamento. Bem que o nosso Primeiro resistiu: até quiseram “salvar o natal”, imagine-se! Mas só obtiveram uma ilusão de normalidade: lá como cá, as criancinhas precisavam de voltar a acreditar no pai natal, enquanto os tutores e empreendedores e outras espécies sérias disputavam a crença de que o novo normal da economia e do lazer poderia estar ali ao virar da esquina, para mais com a vacina já em administração controlada. O autoengano vai melhor para o ego do que ser enganado, embora na prática não haja substancial diferença... (Essa de “salvar o natal” fez-me lembrar um artigo, em abril, sobre a situação no Brasil do execrável Bolsonaro e suas piruetas travestidas de medidas covid, que tinha por título “A Favela não está em Teletrabalho”. Agora, seria caso para dizer, rimando: afinal, o vírus não fez Natal!)

E assim estamos nós. Não foi à falta de não avisarem. Já no fim de novembro, batalhões de especialistas doutorados em coronavírus avançaram com estatísticas, projeções e oráculos sombrios: seria melhor confinar em dezembro, prescindir do pai natal consumista e da alegre mitologia do que chamam “as Festas”, era óbvio que o vírus não usa calendário e nada sabe do Natal e que, portanto, se não houvesse medidas drásticas, era mais que certo virmos a ter um janeiro negro, com números de estarrecer e o pessoal da saúde em exaustão total. Mas, qual quê: esses especialistas do telejornal são uns alarmistas, o povo é sereno, a sociedade tem de funcionar minimamente, ou saúde ou economia é um falso dilema... e era mesmo preciso “salvar o natal”! O governo do retângulo lá ia desenhando, semana após semana, um verdadeiro labirinto de medidas, concelho sim, concelho não, perceber os espaços e as horas era mais extenuante que submeter-se a um exame de código para carta de condução! E... em frente e em força Festas adentro, a normalidade a regressar pouco normal, o espaço público a abarrotar de luzinhas e presépios por cidades e vilas da nação, o mau gosto da cangalhada e dos bichos embalsamados instalando o natal dos leds chineses nas grandes praças do bom povo português, os centros comerciais muito bem dispostos, como sempre, e dias depois era já o ano novo, a coisa correu bem, apesar dos avisos a malta conviveu conforme pôde, ora então, não íamos viver uma data dessas em confinamento: o vírus, se acaso ainda mexia, que esperasse a sua vez; mas, pelo menos, já tínhamos “salvo o natal”!

Pois: tudo muito bonito, mas, janeiro entrado e os Reis já sem festa, percebeu-se que a realidade não se fora embora com o pai natal, e muito menos aceitara ficar confinada nos planos angelicais dos “pais da pátria”. O vírus não lhes obedeceu e não fez natal! Agora, é o tudo ou nada: os números péssimos de cada dia, o famoso RT cada vez mais virulento, o pessoal da saúde a sucumbir, os hospitais quase em colapso, macas enfileiradas nos corredores como num filme da Grande Guerra, doentes “em viagem” de um hospital para outro em busca de enfermarias! Mau demais, mas é o que acontece quando na gestão da saúde e da doença têm preeminência critérios “políticos”, em vez da objetividade técnica e científica na compreensão e resolução dos problemas. Nada que, entretanto, desde novembro, a própria Europa já não tivesse ensaiado duramente para conter a propagação do contágio. Mas, “cá nada”: na lusitana pátria, a regra e o rigor servem-se sempre em português suave. E, do poder à oposição, político que se preze tem sempre um olho no vírus e outro na urna de voto: o vírus pode esperar, mas o poder não!

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