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Cantar as Janeiras

Impedidos de sair de casa, precisamos de quem nos acuda com bens essenciais

“Janeiro frio e molhado / enche o celeiro e farta o gado.”

Habituados que estávamos a temperaturas mais amenas, para fazer jus ao provérbio popular, precisamos ir buscar à memória invernos daquele tempo, há décadas atrás, quando a ruralidade era o modo de vida da esmagadora maioria do território madeirense, e o turístico sol agora também eclipsado pelos ditames desta desesperante pandemia, ainda não era o motor da nossa sobrevivência. Nem as mágicas virtualidades (?) de praças financeiras ou centros internacionais de negócios, em que tantos acreditam…

Em dias assim, dizia-se que a chuva “tinha pegado de ajuste”, e que estava bom era para “fazer cinza”, ou seja, acender a lareira da cozinha, sentar-se e esperar que o tempo melhorasse para voltar às rotinas da vida rural. Aplicado aos dias de hoje, para além da chuva, do granizo e do frio, há outro factor sanitário a ditar que fiquemos mais por casa, o que talvez ainda não tenha sido entendido por muitos, a julgar pelo preocupante cenário dos números de contágios oficialmente ditos, e dos outros que do conhecimento de proximidade vamos inferindo…

Dos casos vividos de infeção e confinamento, estamos a aprender como é importante construir sólidas redes de solidariedade pessoal, para o imprevisto. Porque, impedidos de sair de casa, precisamos de quem nos acuda com bens essenciais: alimentos, medicamentos, produtos de higiene… Mas também com uma palavra amiga de partilha, encorajamento, ânimo e esperança… Para além da legal monitorização das forças de segurança e da humana limitação de quanta linha telefónica pública de emergência haja!…. Cooperar e partilhar responsavelmente…. Porque hoje és tu, mas quem sabe se amanhã não serei eu a precisar de ajuda?

Neste tempo de previsões e resoluções, tantas vezes irreais, quando o alastrar da infeção e os números do empobrecimento crescem em paralelo, ganha algum sentido a ideia utópica de uma melhor partilha de recursos, para muitos o princípio da Justiça e do Bem comum. Dão-lhe o nome de Rendimento Básico Universal ou Incondicional, um atribuir a cada cidadão adulto uma determinada importância em dinheiro, de modo a permitir-lhe uma vida digna, cidadania e ao mesmo tempo alimentar a economia. A sua fundamentação radica nas profundas alterações no mundo do trabalho, devido ao avanço tecnológico da automação, da robótica e do digital, na base da chamada terceira revolução industrial… Também no desenvolvimento sustentável… Que tal adicionar o alastrar dos efeitos da pandemia?

Ela ataca-nos no centro da nossa condição humana: o cuidado do outro, a expressão dos afetos, a proximidade, a socialização, o convívio, o trabalho de equipa, o estarmos juntos. E não apenas no mundo laboral; também o universo familiar, o escolar, o lazer nas suas diversas formas: turismo, desporto, música, cultura, teatro, celebrações festivas… E há uma imensidão de profissionais, artistas, técnicos, atividades, trabalhadores cuja situação financeira foi dramaticamente atingida, privados do seu ganha-pão, para uma sobrevivência condigna…

Donde, partilhar, distribuir, dividir mais e melhor, de modo a assegurar sobrevivência e dignidade com equidade afigura-se o imperativo ético emergente, enquanto sociedade. Cumprir a previsão de abundância prometida por este janeiro frio e molhado?

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