Crónicas

Um lugar estranho

Não me compreendam mal. As medidas de Outono são úteis. A segunda vaga impõe respeito, e também coerção

Todos conhecemos alguns títulos mal traduzidos. Em Portugal, pelo menos, há o hábito de explicar o filme quando a tradução é mais áspera. Foi assim que “Karate Kid” se tornou no “Momento da Verdade”, que “Braveheart” ficou “O Desafio do Guerreiro”, e “Die Hard” se converteu no “Assalto ao Arranha-Céus”. Em casos mais pitorescos, inventa-se. “Lost in Translation”, para cúmulo, perdeu-se na tradução. Ficou “O Amor é um lugar estranho”, numa opção que só se explica por ciúmes de Scarlett Johansson, ou inveja de Bill Murray, ou vice-versa.

Por todas as más traduções, compensa talvez reparar nas boas. Naquelas que, respeitando o sentido do original, inovam e superam-no. É assim com a Lei Seca.

A Lei Seca refere-se, em Portugal, aos anos da “Prohibition”. Em 1919, os americanos aprovaram uma alteração à Constituição que proibia o fabrico, importação, transporte e comércio de bebidas alcoólicas. Os catorze anos seguintes foram de crime, contrabando, clandestinidade e corrupção. Se era proibido fabricar, havia alambiques em casa. Se era proibido transportar, havia alçapões nos camiões. Se era proibida a venda ao público, recebiam-se “amigos” na sala. “Mais vale a Lei Seca do que acabar a bebida”, diziam os ricos, embebedando-se em sossego nos parapeitos das mansões dos Hamptons e da Nova Inglaterra. Eram os “loucos” anos 20. Entretanto, na baixa da cidade, os fanáticos da temperança escorraçavam à paulada os bares clandestinos dos imigrantes e da classe trabalhadora. O submundo medrava à volta das destilarias e cervejeiras. Nascia o crime organizado. E Al Capone prosperou. Em 1933, num acto inédito, a 21.ª emenda revogou a 18.ª emenda, terminando com a Lei Seca.

“Lei Seca” é melhor do que “Proibição”. Combina a metáfora e o duplo sentido com um ataque, letal, ao coração do problema. A Lei era “Seca” porque secou as gargantas dos cidadãos, mas foi também “Seca” porque se desvitalizou, porque renegou o sangue e a vida das funções do Estado e do mandato popular para penetrar, por sua iniciativa, na privação moral da bebida. O que ficou foi a carcaça da Lei, um teatro ou um ritual, em que a vontade de cumprir se dissociou do crime e do castigo. A Lei Seca só foi cumprida por quem sempre a quis cumprir. Aos demais restava a dissimulação, o engenho, e o gozo da sabotagem. O Estado, quando guarda a Moral, acaba por distribuir o direito a ser imoral. E a Lei Seca distribuiu-o larga e perversamente.

A Lei foi “Seca” porque foi estéril, quebradiça, fraca, improdutiva. Lei perversa, lei espantalho, lei espectro, sombra de uma força que a impunidade ultrapassou e o crime usurpou. A Lei Seca trouxe, de resto, tempos molhados: obrigando ao que ninguém queria cumprir, acabou por decretar a desobediência civil.

Estes dias lembram, por vezes, os da Lei Seca.

Não me compreendam mal. As medidas de Outono são úteis. A segunda vaga impõe respeito, e também coerção.

Mas isso não é verdade para todas as medidas. E não é, sobretudo, verdade quanto ao espírito com que se aplicam as medidas. Com o tempo veremos, talvez, que o espírito Covid é na essência puritano. Que não procura apenas a prevenção, mas sobretudo a pureza. E a pureza é uma coisa perigosa, porque nos leva a ignorar os nossos defeitos e a projectá-los e persegui-los nos outros.

É esse espírito que atrai o Estado para todo o tipo de incongruências. A Fórmula 1, por exemplo, vale o risco de contágio. Prestar homenagem aos mortos nos finados não vale. Tomar copos num restaurante vale. Tomar copos num bar não vale. Fátima não vale, e o Natal em Família pode não valer. Mas comícios e eventos políticos valem.

E é também esse puritanismo que nos atrai para o tipo de hipocrisias. Por mais leis que se aprovem, é raro em Portugal o cumprimento das distâncias. Passa-se muito tempo à mesa, prolongando as proximidades desmascaradas. As festas privadas multiplicam-se, agora com o picante – nunca assumido – da transgressão. Mais vale a Covid do que acabar a festa. Na Cova da Moura, no acontecimento mais espantosamente simbólico do ano, abriu-se fogo sobre polícias que dispersavam uma multidão.

Como os americanos dos anos 20, aderimos ao rito da norma, mas nunca ao seu princípio, numa perigosa equivalência entre o que é legal e o que é correcto. Como os puritanos – e como as crianças – acreditamos que a natureza é um reflexo da moral, e se subordina às regras e desígnios do homem. Por isso procuramos, ainda, uma regra salvífica que a todos regule e imunize. Por isso somos, ainda, tão severos com os infectados: a doença parte de uma ilegalidade; logo, é um vício; logo é merecida.

Lá fora, numa Europa agasalhada, os casos crescem mais ou menos simultaneamente, sugerindo às mentes mais abertas que o vírus – e os seres humanos – talvez sejam mais sensíveis à luz solar, a temperatura, e o tempo passado em casa do que ao Diário da República.

A lei não tem, não vai ter, nada que ver com isto. A lei é um passa-culpas, um bode expiatório, um ponto de referência de um sistema político que perdeu a autoridade para a pedagogia, e a quem falta a coragem para admitir os limites do seu alcance. Com a Lei Seca, tivemos cem anos para aprender que a consciência obriga mais que a obediência. Não chegaram. A obsessão com o cumprimento e com a evasão é uma desistência de pensar.

São dias de abuso, de cansaço e subversão. O Covid está perdido na tradução. O Covid é um lugar estranho.

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