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Mais habitação, assim não

“O presente decreto-lei pretende ainda continuar a avançar em matéria de habitação, criando condições para que exista mais habitação disponível a custos acessíveis.” – pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro, entrado em vigor no início do corrente mês.

Ora bem, como é sabido por todos, uma das linhas mais angulares do anterior Governo da República foi o combate (falhado, diga-se) à crise na habitação, nomeadamente através do programa “Mais Habitação”, que nos brindou com alterações legislativas como a que aqui tratamos.

Uma das inovações introduzidas por este diploma, é a possibilidade de em qualquer prédio em regime de propriedade horizontal, poder haver alteração do fim ou do uso a que se destina qualquer fração, sem necessidade do consentimento dos restantes condóminos, desde que essa alteração seja para habitação. Na prática, qualquer fração destinada a escritório, restauração, comércio ou serviços, entre outros, pode ver o seu uso alterado para habitação, por vontade exclusiva do proprietário, sem que a assembleia de condóminos tenha qualquer poder de controlo, decisão ou sequer intervenção.

Acredito que em circunstâncias muito especiais, até se pode tratar de um expediente útil, nomeadamente em situações em que, não obstante estarem reunidas todas as condições para habitação, a mudança de destino era sucessivamente bloqueada por dinâmicas próprias das assembleias de condóminos, onde as relações de vizinhança e convivência nem sempre são fáceis, e a retaliação através do voto um lugar mais comum do que aquilo que gostaríamos de admitir.

Mas salvo raras exceções, acredito que se trata de uma medida inconsequente, com desígnios unicamente eleitoralistas e populistas.

Imaginar que muitas das lojas, escritórios e espaços comerciais que conhecemos, independentemente da sua localização, história, condições, usos e costumes, poderem tornar-se habitações é simplesmente alarmante, e absolutamente avesso a qualquer planeamento urbanístico.

Ou ainda, imaginar que um prédio com áreas comuns projetadas para vinte agregados, passe de um momento para outro, a comportar mais cinco ou dez famílias. É uma porta aberta, e nem sequer muito dissimulada, para a guetização do parque habitacional.

Naturalmente, todo o processo de licenciamento terá sempre de passar pelo crivo das câmaras municipais, que aprovarão ou não os projetos, e avaliarão se estão reunidas todas as condições de habitabilidade. Além disso, em muitos dos casos acabará por haver também um controlo indireto por parte das assembleias de condóminos, pois todas as modificações da linha arquitetónica ou do arranjo estético do prédio, exigem aprovação por maioria representativa de 2/3 do valor total da permilagem.

Independentemente disso, não há como não qualificar esta alteração legislativa como irresponsável.

A crise na habitação - com a qual estou preocupado e absolutamente solidário - não pode de forma alguma ser lateralizada, mas o seu combate terá de ser feito com recurso a legislações e políticas concertadas, que resolvam efetivamente, a curto e a longo prazo, os problemas da habitação e não se limitem a disfarçá-los, ou pior, a agravá-los.