Crónicas

A crueldade da normalidade

Normalizar o que é desumano é perpetuar hábitos doentios. O que consideramos ser ‘normal’ pode afinal, ser cruelmente anormal quando visto à luz da consciência. Como lembrou Carl Yung, até tornamos consciente, o inconsciente vai conduzir a nossa vida e chamamos-lhe destino.

Ah, isso é normal”, escutamos e dizemos com facilidade e frequência. Regra geral, com muito pouca ou até nenhuma consciência. Dito tantas vezes que se torna um hábito. Escutamos, dizemos isso e dizemos também: “é mesmo assim”. Ou “sempre foi assim”. Ou ainda, “nem vale a pena”. Podíamos acrescentar “já fiz tudo”.

Expressões como estas que parecem tão normais, comuns, inofensivas e aceitáveis podem, afinal, ser uma grandessíssima crueldade. Podem aparecer como uma ténue manipulação da consciência individual e coletiva a justificar a manutenção de uma maioria, de uma supremacia, de um inconsciente coletivo que é francamente pior que uma tortura em lume brando. 

Nos últimos tempos, em particular, tenho sido (brutalmente) surpreendida com respostas recheadas daquilo a que chamo “a inconsciente crueldade da normalidade”. Partilho alguns exemplos. Faço-o sem julgamento. Sem apresentar aquilo que no meu mapa, poderia ter sido o adequado a fazer, a dizer. Partilho com a consciência de que todos, sem excepção, fazemos o melhor que podemos e sabemos a cada momento, com os recursos aos quais conseguimos aceder e sempre com uma intenção positiva (na sua origem). Partilho para que possamos refletir e evoluir em conjunto. Para nos conduzir a questionar se o que consideramos normalidade tornou norma o que é apenas um hábito que formou uma amálgama de rotinas automáticas, inobservadas e inquestionáveis que, afinal, poderiam ser de outra forma muito distinta. Por exemplo:

Uma auxiliar educativa que perante um caso de bullying a um aluno, adolescente com défice cognitivo e intelectual (vulgo, atraso mental), diz sobre os agressores, serem alunos exemplares, amigos dos colegas, muito tranquilos. Quando a senhora é questionada sobre o facto desses ditos “alunos exemplares” terem descalçado o colega, de o terem agredido (física e verbalmente), de terem arremessado os sapatos do mesmo contra si próprio, responde: “a culpa é dele, que está sempre a fazer isso, a tirar os sapatos e a atirar aos colegas, ele é terrível, é mal criado, chama nomes a toda a gente, até aos professores, fica sozinho em casa e não toma a medicação, depois vem para a escola e tem chiliques.” E à pergunta: “Mas sabe que este aluno tem um défice cognitivo, um atraso mental, que não tem a mesma capacidade para fazer a auto-regulação?”, a resposta desta auxiliar educativo não se faz esperar: “Sim, sabemos, sim! Só que a deficiência dele é a falta de educação!”

Já um diretor de uma escola profissional, quando questionado sobre alegados casos de discriminação a alunos de outro país, responde: “Desminto! Eles até estudam aqui de forma totalmente gratuita! Deviam agradecer!” Quando questionado sobre ser verdade existir racismo naquela instituição de ensino, diz: “Nunca! Eles é que não se sabem comportar, veem do país deles, sem hábitos de higiéne e sem regras.” E à pergunta:“há ou não há escravatura para com estes alunos, nesta escola?”, a resposta do diretor é perentória: “Em pleno século XXI, na Madeira que é parte da Europa, falar em escravatura é ofensivo!”

Podia lembrar o caso de um jornalista, que do alto do seu machismo, o mesmo que alimenta o patriarcado e os estereótipos inconscientes, destrata de forma inqualificável e vil a imagem física de duas excelentes profissionais da televisão, através da sua crónica.

Parece-me que já está mais do que na hora de questionar se o que consideramos normalidade é saudável?! Se o que consideramos normalidade é, de facto, desejável?! Se o que consideramos normalidade nos torna uno, mais inteiros, melhores seres humanos?!

Para mim é muito claro que a norma deve ser questionar o que consideramos normal para arejar, limpar e elevar a consciência à sua mais elevada expressão e, com ela, a nossa vida, a vida da nossa comunidade, o mundo. Isso ou continuaremos a viver e a perpetuar a escravatura da crueldade da normalidade!

A estratégia da normalidade

A neurociência já desmontou a estratégia da “normalidade”. O processo é ‘simples’, chama-se viés inconsciente. No fundo, é um conjunto de estereótipos sociais, muito subtis que tendemos a manter acerca de diferentes grupos de pessoas. É o olhar automático para responder a situações e contextos para os quais somos treinados social e culturalmente, como uma programação do cérebro. São crenças que nos instalam quando somos crianças e que ditam a nossa forma de pensar, logo, de sentir e comportar. Torna-se algo tão natural que nem questionamos. São, na verdade, preconceitos incorporados no nosso dia a dia, baseados em estereótipos de toda a espécie e que afetam as nossas ações e julgamentos sem que prestemos atenção. Até porque “é normal”.

A perspectiva discriminatória tem sido replicada por já estar presente nos modelos mentais das gerações que se sucederam. Hoje, temos o grande desafio e sobretudo, a humana responsabilidade radical de identificar estes preconceitos que, por serem vivenciados e perpetuados por tanto tempo de forma inconsciente, tornaram-se verdades, impactaram a nossa realidade e por isso, precisam, urgentemente de muita atenção para serem percebidos e desconstruídos. Pelo bem de todos. Pelo avanço da humanidade. Estamos juntos!