Crónicas

Ameixeiras em flor, o prenúncio do calor

Os dias mais quentes ainda vinham longe, mas era bom o princípio

Não sei se foi do muito sol ou da chuva ou, como diz o povo, do tempo andar trocado. O povo já dizia que o tempo andava trocado quando eu era miúda e eu fui miúda há muitos anos. Não sei. A laranjeira carregou de flor antes até de se apanhar as laranjas e vamos em Março e não há maneira de ver flor nas ameixeiras.

É uma das imagens mais bonitas da minha adolescência: as nossas ameixeiras, carregadas de flores, brancas como a neve, a anunciar o início do calor. Os dias mais quentes ainda vinham longe, mas era bom o princípio, sentir que as tardes se alongavam e desapareciam num céu avermelhado. Em breve o frio que subia do ribeiro haveria de se transformar em brisa fresca.

E eu podia vestir mangas curtas, sonhar com a praia e com um verão de aventuras, como se a vida fosse mais interessante e melhor junto ao mar, entre banhos de sol e quando estávamos todos bronzeados. Lá por cima, no Laranjal, o Inverno chegava aos ossos quando o vento assobiava nos eucaliptos e a chuva cobria de lodo os muros. À noite, na hora de entrar na cama, os lençóis estavam frios, muito frios.

Lembro-me de dormir debaixo de uns quatro cobertores, além da colcha e me fazer forte quando havia trovoada e dava a ideia que o céu estava prestes a desabar. E de manhã não era melhor. O quintal estava alagado e no caminho havia poças com água suja misturada com o óleo dos carros. Fazer-me àquele tempo para uma viagem de autocarro era mau e ficava pior quando a lama se agarrava à roupa ou aos tornozelos.

Eu não gostava do Inverno, nem dos dias frios, nem da chuva quente e menos ainda do nevoeiro que descia pelos pinheiros e amolecia todas as bolachas que se compravam à semana na Fábrica Santo António. Lá por cima onde o Funchal parecia campo e tinha pouco de cidade, o Inverno queria dizer lama, humidade nas paredes, dias curtos e escuros. E isso não era coisa que entusiasmasse uma adolescente.

Ainda por cima nos anos 80, quando corríamos todas para ter o bronzeado mais intenso, nem que fosse preciso misturar Coca-Cola com óleo de bebé e torrar depois ao sol sem pensar no resto. E nenhuma de nós queria de facto saber do bom que era ter nêsperas, anonas, ameixas e comida saudável na mesa. Nos anos 80 a noção de bom não correspondia a saudável e quanto mais corantes e aditivos melhor. Pizza e hambúrguer, não era o que comiam nos filmes, nas novelas?

Lembro-me de ouvir os nomes sem saber o que era. Eu, no Laranjal, ainda vivia ao ritmo das estações, enchia-me de anonas e abacates, comia as primeiras ameixas ainda verdes, rondava os maracujás a ver quando ficavam roxos e dava-me ao luxo de rejeitar bananas e nêsperas, que de tanta fartura acabavam sempre por se perder. Era mais ou menos como enjoar a praia no fim do Verão.

E hoje, tantos anos depois, tenho saudades dessa vida. Talvez por estar a envelhecer, por me fazer falta a minha mãe, o meu pai e até os vizinhos com quem cresci. Acho que é por isso que ando de volta das ameixeiras, a ver quando ficam carregadas de flor e brancas como neve.