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O poder absoluto

Que valores para o novo tempo? Se conseguirmos lutar contra o pessimismo, a mudança Está ao nosso alcance

No meu último artigo falei do sentido da política e disse como, nesta crise, se manifestam diversamente as várias formas desse sentido. Contudo, elas apresentam em comum estarem minadas, se não paralisadas, por descontinuidades, roturas aparentemente insanáveis que as palavras “crise” e “fim” por si só evidenciam. A crise no sentido é o somatório de muitas roturas com tradições que se construíram durante séculos. Por certo, a história atesta também que houve sempre descontinuidades mas é característico do nosso tempo que as roturas se façam em relação ao próprio substrato “platónico” do agir e do pensar. Aquilo que se pretende destituir é a verdade enquanto tal, e por isso falamos da crise geral do sentido e dos valores. Num outro plano, os grandes desastres humanos do século XXI afiguram-se também qualitativamente diferentes das guerras e massacres anteriores.

A temática do “fim” não é um capricho niilista de alguns filósofos ou um efeito da moda, mas uma interpretação legítima da sociedade e do pensamento. É no meio dela que nos encontramos, e cabe-nos perguntar como a superar, para não ser a crise a submergir definitivamente o homem. É-nos possível descortinar outros valores que estabeleçam pontes entre domínios que nos aparecem como desconexos, exibir continuidades internas a cada esfera do sentido ético-político, aproximando termos opostos, e revelar talvez afinidades entre o Verdadeiro e o Bem?

A única resposta é que a procura desses novos valores e das continuidades insuspeitadas – só há sentido onde existe continuidade – é uma tarefa desesperadamente urgente. Não há alternativa. Felizmente, o desenvolvimento das ciências e das artes e uma consciência social e política que pouco a pouco se elabora contra o pano de fundo da crise (requerida por esta) permitem-nos sem voluntarismos nem wiishful thinking, alimentar a esperança de se chegar ao fim do túnel. Os tópicos disponíveis não são evidentemente os únicos que conviria tratar. Mas na sua aparente abstracção, subjazem a outros aspectos de uma realidade e em todos eles caminhos novos sugerem algumas saídas. São elas que quero sublinhar e que visam o estabelecimento de passagens entre os domínios da verdade e do sentido (a forma, o fenomenal), isto é, uma possível superação da cisão pós – galileana. Que se prende objectivamente, com a questão da racionalidade e não racionalidade científica, como também a racionalidade política.

Em face de nós mesmos, como responsáveis pela nomeação que, de uma maneira vulgar, chamamos valores, chegamos à crise. É que nós não temos critério para distinguir o que é verdadeiramente valor do que não é. E esta é a crise que não é uma crise por acaso, não é uma crise da cultura nem da civilização, mas é uma crise do senso, daquilo que nós somos como seres que pensam, sofrem, morrem mas sem saber se morrem, pensam e sentem e isso tem um sentido, ou não; a nós cabe decidir, é um problema de aposta, uma outra espécie da aposta pascaliana, aposta que nos faz viver ou morrer, somos nós, não os pais dos valores, mas os criadores dos valores ou, por não sermos capazes de criar, as suas vítimas.

Os espaço político enquanto tal, realiza e garante tanto a liberdade de todos os cidadãos como a realidade de que muitos discutem e atestam. Mas se procurarmos um sentido para além do domínio político, só o poderemos fazê-lo, como os filósofos da polis, se optarmos por interagir com os poucos e não com os muitos, convencidos entretanto de que se falarmos livremente com os outros sobre alguma coisa produz não realidade mas engano, não verdades mas mentiras.

Aqui chegados cumpre dizer que, como resultado das eleições legislativas que ocorreram a 30 de Janeiro último, Portugal volta a viver consigo próprio, com os seus atrasos e os seus poderes. Não é de somenos que voltemos a um poder absoluto que só pode ser temido porque de má memória.

A vida difícil começa agora, e o poder absoluto será um dos seus problemas para o PS.

A maioria absoluta é um risco. Já lá esteve e não foi feliz. A experiência tem sido que nenhuma maioria absoluta seja lembrada como um progresso para Portugal. Ora, uma das fragilidades deste novo ciclo é a sua base de partida: uma convicta mobilização dos eleitores do PS, mas não foi isso que lhe deu a vitória.

Foi o medo na última semana de campanha que deram ao PS a maioria absoluta. Esses eleitores estão agora à espera, para ver como se comporta o Governo. Concedem-lhe um período de graça, mas terminou o seu medo.

Nesta campanha lembrei-me várias vezes do “Ministério da Verdade”, em “1984” de Orwell que zelava pelas verdades do sistema mas era uma parábola dos antigos regimes totalitários estalinistas e fascistas. Quando o Estado ou os Governos têm uma palavra a dizer sobre o que é verdadeiro, as democracias podem abanar. Nesta campanha houve mentiras para todos os gostos. De Ventura a António Costa. A mentira política é uma forma de roubo porque tira os direitos democráticos às pessoas, os eleitores não conseguem fazer juízes de valores justos como base em falsidades. Porque a mentira mina a confiança. Sem confiança as pessoas perdem a referência.

Peter Hacker, em Appearance and Reality, diz que a verdade tem geralmente dignidade, mas não charme. Somos muito mais facilmente seduzidos pelas ilusões da filosofia do que pelas humildes verdades que ela é capaz de descobrir e comunicar. Isto é verdade, ao que parece não só no caso da filosofia, mas de um modo bastante geral. Também poderíamos dizer acerca da verdade que geralmente obtém o respeito e os louvores mas não a preferência e as honras. Não é pela verdade que somos mais espontaneamente atraídos e cativados, e não é a verdade que é mais querida e creditada. Com a falsidade, parece dar-se exactamente o oposto. Está, à partida, em desgraça, mas isso não parece impedi-la de atingir a maior parte das vezes, o sucesso e o poder. Formalmente depreciada e até mesmo desacreditada, tem a vantagem de ser geralmente muito mais atraente do que a verdade e de obter mais facilmente a aceitação. Num estudo do MIT, uma mentira propaga-se mil e quinhentas vezes mais depressa do que uma verdade. Por outras palavras, a vontade da verdade que está na base da ciência, conduz à construção de um mundo que é supostamente, o verdadeiro, aquele que pode ser encontrado por detrás das aparências e constitui a sua origem, causa e explicação. Mas podia dar-se o caso precisamente de ser esse mundo a ter menos verdade e realidade, a ter, de qualquer forma, muito menos verdade e realidade do que o mundo dos fenómenos; por outras palavras, ser um mundo falso, onde a mentira apesar de tudo conseguiu impor-se, como muitas outras, essencialmente porque provou ser muito útil e até após alguns tempos indispensável.

A partir de agora e com estes resultados, o PS pode fazer o que quiser. Governar como entender e com quem desejar. Traçar livremente o seu caminho. Elaborar e fazer cumprir o seu programa. Preparar as suas políticas e designar os seus protagonistas. A nada está obrigado, a não ser à lei e à democracia. À justiça e à honestidade. Os socialistas já não têm desculpa.

Entre a surpresa e o embaraço a distância é pouca. O clamor que ia chegando naquela noite às fortalezas partidárias, era, não uma revolução mas a transferência de 340.000 mil votos do PCP e do BE para a maioria absoluta do PS, os três aliados desavindos. Em 2015 estes mesmos partidos venderam aos portugueses a mentira de um amor finalmente reencontrado, sem muros e eterno. Tudo isto é um embaraço, mas é com ele que António Costa vai ter que provar que a maioria absoluta não é poder absoluto, que o PS não é o Estado, nem o Estado o PS.

Agora o Secretário Geral do PS quer “reconciliar” os portugueses com a ideia de maioria absoluta. Será interessante assistir. Pela frente tem o propósito de melhorar as instituições democráticas que é certamente um passo na direcção certa; mas só através daquilo que o vencedor do Prémio Nobel Amartya Sen descreveu como a “prática efectiva” da democracia é que a verdadeira mudança poderá acontecer. Por isso, não devemos esperar que o efeito total destas “reformas” se sinta de um dia para o outro.

Se conseguirmos lutar contra o pessimismo, a mudança – do tipo que verdadeiramente importa e não aquela que é prometida pelos políticos durante as campanhas – está ao nosso alcance.