Crónicas

Quando a Casa é a «boca de um tubarão»

A poeta e ativista queniana, de origem somali, Warsan Shire, diz que «Ninguém deixa a sua casa a menos que a casa seja a boca de um tubarão.»

A minha casa nunca foi a boca de um tubarão. Sempre foi um porto seguro para o qual voltei quando acabei a minha curta incursão pelo Continente para concluir a minha licenciatura. Foi a única vez que vivi fora da Região – e nem sequer foi viver fora do País, com uma outra língua, com uma cultura muito diferente da minha. Mas ainda assim, mesmo sendo uma experiência com riscos muito controlados, lembro-me perfeitamente dos receios que tínhamos perante a perspetiva de mudança para o Continente, quando o secundário se aproximava do fim. O temor e tremor perante o desconhecido. Muito porque já nessa altura havia a narrativa oficial de que por cá éramos os maiores e que por lá só existia sobranceria. A verdade é que nunca precisei do kit de sobrevivência criado por adolescentes muito impressionáveis e vulneráveis à narrativa oficial de que as pessoas continentais comiam madeirenses ao pequeno-almoço.

Mas esta minha experiência de cinco anos a estudar numa Universidade no Continente, dentro do meu país, não se compara com a experiência de quem tem de partir porque «(…) a casa não te deixa ficar».

E eu, madeirense que a única vez que vivi fora da ilha foi para estudar, paraliso quando ouço os relatos de pessoas que tiveram de deixar a sua casa e optaram pelo nosso País para refazerem a sua vida. Paraliso perante a notícia do meu tio que partiu para a Venezuela há quase meio século e que depois de uma vida de trabalho foi assassinado durante um assalto, quedo-me perante o relato da minha tia que foi espancada mas teve a sorte de sobreviver. Paraliso quando ouço uma Mãe explicar-me que não quer regressar à terra onde teve de se esconder com a filha de três anos, completamente aterrorizada, durante um arrastão com centenas de motards. Não consigo quebrar o silêncio quando a ouço dizer que pensou que não iria sobreviver e que ainda hoje a filha estremece quando ouve o som de uma motorizada. Paraliso quando ouço alguém dizer-me, com toda a naturalidade, que perdeu quase tudo porque a violência e a falta de democracia criam ambientes perfeitos para expropriações – públicas e privadas.

Paraliso quando leio no poema que

«só corres para a fonteira

Quando vês a cidade inteira a correr também»

Foi durante esta semana que recebi, por parte de um amigo, o testemunho de um imigrante português na Venezuela. No texto sobre a sua vida, dizia que aquele era o relato da «história contemporânea da Venezuela narrada pelos seus protagonistas», uma história de acolhimento, de muito trabalho, de sucesso, mas também de perda e de desânimo perante um País que se tornou uma sombra do que era. E, de facto, a história de qualquer região, de qualquer país, tem de ser também narrada por quem a protagoniza, com todas as suas nuances: de progresso e, principalmente, de retrocesso.

A pessoa que redigiu o testemunho teve de sair de Portugal a meados do século passado. Ele, como tantos outros e outras, que foram obrigados a partir por causa do País que éramos. Um país em que estudar era um privilégio de muito poucas pessoas, em que o destino de muitas era os pés nus e os pratos quase vazios e, a determinada altura, a possibilidade de os jovens serem recrutados para uma guerra colonial que se arrastou demasiado tempo.

Na carta que o meu amigo me enviou, a pessoa que escreveu o testemunho partiu para a Venezuela, mas há tantos outros destinos que foram escolhidos pelas pessoas desse Portugal vergado perante o peso do Estado Novo, que era na verdade um Estado apenas para alguns. Muitas não regressam e permanecem nos países em que (re)construíram as suas vidas. Muitas regressam de forma planeada e com capacidade para viverem o resto dos seus dias confortavelmente. Mas também há os casos em que o País de acolhimento mudou – e para pior. E por isso assistimos ao regresso de muitas pessoas que não tinham planeado esse regresso. O emigrante da carta-testemunho que me chegou é um desses casos e é espelho de tantos outros casos. De pessoas que perderam tudo. De pessoas que perderam muito. De pessoas que procuram segurança e paz, fundamentalmente paz.

Entretanto, o nosso País também mudou. O 25 de Abril de 1974 abriu portas inesperadas, permitiu que sonhássemos, que permitiu que aprendêssemos a ler e aspirássemos a ir mais longe do que saber assinar o nome ou concluir apenas o ensino primário. Permitiu que reivindicássemos infraestruturas fundamentais para melhorar as nossas condições de vida e que acabássemos oficialmente com as colonias (oficiosamente nem tanto, outras colonias se estabeleceram e prosperaram – porque também as permitimos). Mas não conseguimos tudo, porque abril é projeto e abril ainda não se cumpriu – e abril só se cumpre na exata medida em que quisermos que se cumpra.

A Região mudou, o País mudou ainda mais, mas ainda não foi o suficiente. E essa insuficiência tem permitido o ressurgimento de um saudosismo infundado por tempos que de facto não existiram porque a prosperidade do Estado Novo era a prosperidade de poucos à custa de muitos.

Mas não é só o saudosismo infundado que ressurge. Ressurgem também os discursos políticos inflamados proferidos por certos agentes políticos que estão carregados de xenofobia e de incitamento à exclusão. Ao mesmo tempo, estão também aí intervenções menos inflamadas mas insidiosamente calculistas, baseadas em mentiras e que sorrateiramente dividem. Que plantam intolerância entre quem cá sempre esteve e entre quem regressou. Plantam a desconfiança, a desinformação, manipulam os factos, alimentam os receios perante o desconhecido. Em ambos os casos, são discursos que dividem para melhor (tentar) reinar. São discursos que estão repletos de falsas afirmações que usam uma lógica simples, sedutora mas profundamente errada. E ambos têm horror aos factos e ao contraditório.

Certo é que são discursos que pretendem, com fins eleitoralistas, barrar a capacidade que temos de escutarmo-nos uns aos outros. E a perda dessa capacidade tem custos enormes para a democracia e para o bem-estar comum. Saibamos identificá-los, saibamos bani-los do seio da nossa comunidade, uma comunidade intercultural que tenha os olhos postos no direito fundamental a uma casa que não seja a boca de um tubarão.