Crónicas

A cabine

É necessário alguma poesia e muito poder de encaixe para aceitar que é assim mesmo. Há um momento em que percebemos que o “nosso tempo” foi há muito, mas muito tempo

Eu tive 20 anos há muito tempo. É um facto presente, lembro-me quando me dói as costas depois de usar sapatos de salto ou quando afasto um frasco de serum para o cabelo para ler as letras pequeninas por baixo do “como usar”. Ou pior, quando procuro um número nos contactos do telemóvel e percebo que há alguns mortos, pessoas a quem já não posso ligar. Envelhecer tem esse lado amargo, de caminharmos entre os que estão cá, os vivos e os nossos fantasmas.

É necessário alguma poesia e muito poder de encaixe para aceitar que é assim mesmo. Há um momento em que percebemos que o “nosso tempo” foi há muito, mas muito tempo. E se esquecemos, a realidade faz o favor de lembrar. Eu tive um destes momentos a meio da semana, quando, a caminho da praia, reparei na cabine telefónica ali em frente ao Carlton.

Está lá há anos, tem entrada para cartões e moedas, mas no visor aparece uma mensagem a avisar que está manutenção.

E ter voltado atrás para ver se funcionava fez-me recuar 30 anos, ver-me nova por dentro e por fora, com moedas de 50 e 20 escudos dentro do bolso das calças de ganga, num domingo à tarde, a entrar numa cabine, ainda mais antiga do que aquela e carregar o indicativo antes marcar 45472, o número da casa do Laranjal. E era sempre uma conversa rápida, quase só dava para dizer que estava tudo bem, ali, em Lisboa, comigo, com os estudos, que tinha feito amigos e eram bons, tão bons que estavam todos convidados para umas férias na Madeira.

As cabines favoreciam estes anúncios à queima roupa, não se podia alongar muito, não havia ambiente. Do lado de fora, os carros apitavam, faziam barulhos e, às vezes, havia fila, quase sempre africanos deslocados. Como eu compravam cartões para ligar para Angola, Guiné, Cabo Verde na loja dos telefones públicos que, nessa altura, estava aberta no Rossio. Lembro-me de ouvir crioulo, português de África que se misturava com o meu madeirense, ainda mais carregado por estar a falar a língua de casa.

Com isto na cabeça e um sorriso na cara – dispõe bem lembrar de como fomos – estendi a toalha, apanhei sol e à fui água, que me soube ao mesmo de sempre, pois há coisas que não mudam. E depois fiz o percurso ao contrário, Estrada Monumental adiante, troca de passeio por causa das obras, põe a máscara ao passar por um grupo maior, tira logo a seguir e desvia das bicicletas e da malta do running. A memória da cabine e de mim em Lisboa em 1991 não parecia assim tão antiga, não pareceram 30 anos, se eu ainda era nova.

Até dar de caras com as miúdas, pouco mais de 15 anos, em pose de fotografia para o Instagram, com os cabelos, a maquilhagem e as roupas de agora, mais a febre da melhor imagem e do máximo de likes. Nenhuma daquelas meninas viu uma cassete ou entrou numa cabine para ligar para casa. Já nasceram num mundo com telemóveis, computadores e net rápida. Em suma, não faz ideia do que era esse tempo analógico do fim do século XX. E o século XX parece o mesmo que o século XIX, o mundo delas cabe no telemóvel, não lhes interessa mais e menos a cabine em manutenção em frente ao Carlton.

A menos que se faça moda no Instagram.