Crónicas

A vida toda pela frente

Não segui influencers, pois naquela altura copiava-se quem estava mais perto, tinha melhor gosto e imaginação

Falta uma hora para o anoitecer e já a rua mexe, repleta de adolescentes, eles com o capacete da mota no braço; elas com o telemóvel no bolso dos jeans. E todos têm a máscara algures para o caso de ser preciso. A história ainda não acabou, mas respira-se esperança e há um quê de outros tempos na atmosfera, quando a noite começava à tardinha na marina, entre imperiais e tremoços.

São tão novos como eu era há coisa de 30 anos, ali no virar da década de 1980, quando se ouvia música em cassetes e bebíamos cerveja e vodka laranja. As miúdas usavam fatos de banho, vestiam blusas com chumaços e iam ao cabeleireiro fazer permanentes. A maioria tinha posters de cantores pop colocados no interior das portas do guarda-fato e lutava para sair à noite. Ou então tinha que se contentar com um sunset na marina, antes de ir a correr para o autocarro.

A mim parece-me que foi ontem que fiz ou sonhei fazer, que quis completar a lista do que me poderia transformar no padrão do momento. O equivalente da época a uma miúda de sucesso, das que têm muitos seguidores na conta de Instagram. Se lhes contasse, aos rapazes de cabelos grandes e às raparigas de calças ao estilo dos anos 70, não hesitariam em colocar-me no lugar onde estão os pais e os avós, na prateleira dos velhos de uma maneira geral. Ou seja, a categoria das pessoas que nasceram antes do telemóvel e das redes sociais.

Todos os que viveram nessa época indistinta entre a chegada de João Gonçalves Zarco e o dia em que nasceram. E esses são os que namoraram pelo telefone fixo, às escondidas, e os que, para acalmar fúrias, ligavam da cabine para avisar que iam chegar tarde. Eu usei-as muito, em Lisboa, para fazer prova de vida e pedir dinheiro para as fotocópias, que era uma maneira de dizer que a mesada tinha esgotado e que me faltava a coragem para dizer, assim, preto no branco, que os cinco contos eram para jantar fora.

A pandemia desses anos era uma falta de dinheiro para quase tudo: para pagar as viagens, o quarto, os livros, as fotocópias e o prazer de ir noite adentro. Não podia ser só estudar, eu queria rir com os amigos à volta da mesa, de roda de uma garrafa de vinho, entre tiradas filosóficas e ideias muito certas sobre o futuro que, para nós, estava já no dobrar da esquina. O convívio contava muito e parece que, nisso, não se mudou.

Conviver é tão importante que até se documenta para memória futura com fotografias e vídeo, num frenesim de não deixar passar em branco uma bebedeira e todos os disparates que dai decorrem. Dá a ideia de que antes não havia, nem bebedeiras, nem parvoíces ou asneiras e que fomos todos santos e puros, mas eu sei que fui como eles, como aqueles miúdos, que andam abaixo e acima, de bar para bar. Não bebi poncha porque não era moda, nem tirei fotografias ou fiz vídeos que as máquinas não eram para todos. E não segui influencers, pois naquela altura copiava-se quem estava mais perto, tinha melhor gosto e imaginação.

Agora passa tudo pelo telemóvel. Não há cabines para ligar para casa, vai tudo via sms, pelo WhatsApp, há emojis para comentar fotos e posts, mas até esta geração que não passa sem a sua existência virtual, tem gosto em estar na rua e quer viver como eu quis. Vê-los fez-me ter saudades desse momento incrível que é ser novo e ter a vida toda pela frente.