Crónicas

Um russo genial

Em matéria de grandes evocações literárias, 2021 foi considerado o “ano Dostoievski”, pois concentra as duas datas que balizam a vida do grande escritor: os 140 anos da sua morte (9 de fevereiro) e os 200 anos do seu nascimento (11 de novembro). Nasceu em 1821, morreu em 1881. Aos 59 anos tinha alcançado a glória literária, mas a sua vida não muito longa ficava marcada por experiências limite de sofrimento e tragédia, como também pelo testemunho profundamente existencial das dimensões da fé e da esperança.

Agora que uma Feira do Livro oferece clara visibilidade a tantas obras de autores consagrados, normalmente arredados dos escaparates por razões de pura tática comercial e, tantas vezes, para dar lugar de destaque a puras mediocridades — a “literatice” feita consumo cultural —, temos uma oportunidade de ler ou revisitar os títulos mais conhecidos e universais de Dostoievski, de resto em excelentes traduções agora diretamente da língua russa, de que são exemplo maior as obras traduzidas pelo casal Nina e Filipe Guerra.

Certamente que não supera a banalidade dizer que Fiódor Dostoievski é um dos mais altos expoentes da literatura russa, mas o que importa sublinhar é que a superior exemplaridade literária e antropológica das suas grandes criações, tem tudo a ver com a sua própria experiência de vida e com a força romanesca de mergulhar fundo nos abismos da alma humana, em narrativas pungentes onde o bem e o mal se digladiam no coração dos seus personagens, densos e verdadeiros. A sua capacidade de percorrer a rede contraditória das emoções humanas, compondo retratos morais de plausível complexidade psicológica, justificam que Nietzsche se tenha referido ao grande autor russo como “o único psicólogo com quem tenho algo a aprender”.

Bons sentimentos não fazem bons romances, que sempre estão muito para lá da biografia. Mas, a obra de Dostoievski não se compreende plenamente sem recurso ao biográfico, marcado pelo “humano demasiado humano” (para citar Nietzsche de novo) da sua história pessoal e do contexto familiar, social e político da uma Rússia czarista e ortodoxa, onde havia de perdurar ainda por largo tempo o regime da servidão. Do vício (bom) dos livros, ao vício (mau) do jogo, da condenação à morte e, a minutos do fuzilamento, a comutação da pena por anos de exílio e trabalhos forçados na Sibéria; a sua fé cristã, de arreigado misticismo; as interrogações sobre a liberdade, o pecado e a morte; a busca do sentido da vida e a esperança de uma redenção: eis aspetos fundamentais que pontuam a obra de Dostoievski e que tornam os seus romances — profundamente “existenciais”, não “existencialistas” — tão nossos “contemporâneos”; um espelho onde é sempre possível ver aqueles traços, negros ou luminosos, que em interrogação nos devolvem à nossa própria humanidade.

É essa forte dimensão moral e a coerência literária que tornam as suas obras tão universais, a ponto de dizer-se que quem não conhece os grandes escritores russos, desconhece a nossa condição e pouco sabe da alma humana. Não por acaso, um humanista da craveira de George Steiner ter-se-á debruçado com afinco sobre o assunto, deixando-nos este título emblemático: “Tolstoi ou Dostoievski”. Aí, Steiner considerava o genial romancista como “um homem que viveu em intensa incandescência”. Ou, nas palavras do próprio Dostoievski, “o sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo”.