Crónicas

O civismo demitiu-se

Na cabeça do Madeirense, a ideia germinava: vamos apanhar no Turismo, mas “o bicho” vai passar-nos ao lado

Eu percebo, Senhores.Também me amotinei, em devido tempo, com a fúria e exagero legislativo dos dias do vírus,com o regresso a essa crença, de péssima memória, de que a humanidade obedecia ao comando remoto da Razão. E também eu desconfio da incoerência, e da regulação económica disfarçada de regulação pandémica. Dos restaurantes onde se pode ir aos seis, quando em casa se pode ir aos cinco. Da suspensão de competições desportivas. De na Madeira se adjudicar, sem concurso, o hotel onde se concentram – pagando – os infectados com Covid.

Sucede que é preciso ter princípios, e é preciso haver limites. Quando o Dr. Marques Mendes, naquele seu jeito demagógico de alfaiate de um tecido invisível, garante que o Estado de Emergência lhe “sabe a pouco”, a gente desconfia de tanto escrutínio. E desconfia bem.

A crítica é um exercício imprescindível à democracia, e é o que nos distingue, por ora, de alguns Estados mais avançados do Oriente, que já decretaram o fim da pandemia. No entanto, os tempos reclamam um pouco mais de seriedade e critério.

E o desdém pelo Governo, a censura automática e grave de tudo o que diz e faz, não têm apenas origem no cansaço, mas também num medo inconsciente do caos. Atacamos as autoridades porque nos recusamos a crer que o vírus é incontrolável, como em parte terá de ser. Porque acreditamos – subliminarmente – que a doença não é um acontecimento natural, mas um produto do comportamento humano. E para regular o comportamento – e eis o passo perigoso – existe o Estado.

Ora, não se exige do cidadão comum que seja um perito em filosofia política, mas convém que não se caia no populismo teoricamente confuso em que a civilização agora se deleita e consola. É imperativo que se percebam as causas da transmissão, e que a abordagem legislativa ao vírus tenha uma base científica. O que não convém é que se considerem “científicas” ou “finais” medidas meramente preventivas, ou que se exija do Governo um regime igualmente “científico” que imponha, à paulada, uma utopia sanitária.

Na Madeira, é ainda aqui que estamos. Começou-se por discutir, com uma seriedade cândida e quase criminosa, o encerramento do aeroporto. Partiu-se, depois, para um registo de quarentena forçada, a que se seguiu um regime de testes obrigatórios. Os contágios, episódicos, deram melhores guiões de novela do que casos clínicos. Montou-se um mecanismo tácito e violento de controlo social, assente na bilhardice, no rumor e na vigia de estendal. Instalou-se uma certa convicção de segurança e excepcionalidade que, se não foi assumida, foi decerto exercida em festas, bares, e outros viveiros de convívio. Na cabeça do Madeirense, a ideia germinava: vamos apanhar no Turismo, mas “o bicho” vai passar-nos ao lado.

Como se viu, como se vê, não vai passar. E não só não passa, como o passo tem de se acertar.

Acerta-se, primeiro, com intolerância para as teorias da conspiração que desdenham ou subestimam a doença. É fácil de explicar. A mortalidade por Covid é muito baixa. Nos cuidados intensivos, porém, é de 20%. Se não houver vagas nos intensivos (que a Covid ocupa copiosamente), a mortalidade para os que deles precisam – por Covid, ou por outras doenças e acidentes – é de 100%. Esse ponto, de triagem de guerra e falência de serviços, em que médicos exaustos decidem quem vive e quem morre, é dramático e desumano. Viveu-se em Março em Itália, e por pouco não se vive em Penafiel. Indo ao que os políticos não contam: a Madeira tem, como o resto do País, um número modesto de camas. Ao contrário do resto do País, não lhe é fácil transportar doentes para Hospitais mais disponíveis, e debate-se com um problema gravíssimo de camas ocupadas por razões sociais, de que nenhum madeirense pode em consciência lavar as mãos. Negar o risco não é judicioso, nem a marca de um espírito aguçado. É um voto voluntário de ignorância.

Mas o passo também se acerta com um certo arregaçar de mangas, com o repúdio ao paternalismo de Marques Mendes e à escola que faz no país. Quando o oráculo da Nação declarou que o Estado de Emergência “sabe a pouco”, o que sugeriu é que os Portugueses não fazem mais do que o “pouco” a que o Estado de Emergência lhe sabe.

E o pior é que lhe vamos dando razão. As novas medidas regionais têm incoerências e excessos de zelo. Mas aplicam-se a uma população igualmente avessa à coerência e ao zelo. Que se julga isolada da pandemia, e espera que os seus governantes alombem sozinhos uma carga que é global.

A exasperação com as medidas é legítima, sobretudo para quem tem um negócio. Mas o cidadão andar à sua boleia denuncia que a prevenção não se pratica por prudência, mas apenas por obrigação. Que não nos orientamos pelo risco pandémico, mas pelo risco legal: damos festas em casa desmascarados, mas usamos máscara na rua sozinhos. O civismo demitiu-se, foi trocado pelo cumprimento. Não aceitamos responsabilidade, nem nos conformamos com a fatalidade dos tempos. Pedimos que o Governo deixe de nos tratar como crianças, mas recusamo-nos a crescer.

Talvez um dia não seja assim. Talvez se tome partido do clima, e aproveite o ar livre para respeitar distâncias. Talvez os restaurantes possam estar abertos até tarde, e não seja preciso obrigar madeirenses regressados – não apenas aos estudantes – a se resguardarem até ao teste negativo. Talvez as comunicações do Governo se possam ficar por 4 M’s: Mãos, Máscaras, Metros, Madeira.

Até lá, e antes até de nos queixarmos, convém apresentar pessoalmente a prova – eternamente adiada – de que somos mesmo um povo superior.

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