Crónicas

Chega p’ra lá...

Por estes dias, a monocultura noticiosa do Covid foi postergada pela inesperada “depressão açoriana”, que varreu do mapa político décadas de monocultura socialista. Sabendo-se o que se sabe daquelas ilhas, e do modo como o poder sobre elas se “derramava” e em suave tenaz as “abraçava”, quase apetece dizer: os socialistas só podem queixar-se de si próprios...

Na excelente série “Segurança Nacional”, havia esta epígrafe: “Não podes ter uma cobra no quintal, e pensar que ela só vai morder o teu vizinho...”

Lembrei-me disto a propósito do ciclone pós-eleitoral açoriano, com persistentes efeitos de tempestade a chegarem agora ao continente. No centro do furacão, o acordo para formar uma “caranguejola” governativa de centro-direita, com apoio parlamentar do Chega. Eis que surgem, então, alterosas ondas de indignação entre as “púdicas donzelas” da esquerda doméstica (comunicação social e barões lisboetas incluídos), ameaçando rasgar as vestes ou cobrir-se de cinzas no luto fingido do seu próprio ressentimento! Como se este tipo de soluções governativas de base parlamentar fosse um inédito achado açoriano! Cá nada: a velha roda foi inventada há muito tempo, e esta “roda” já o foi há uns aninhos, quando o grande chefe, sem ter ganho eleições, pôs em andamento as rodas parlamentares de uma “geringonça” de esquerda que, entre solavancos e um penoso chiar de freios, faz ainda rodar uma espécie de carroça governativa, pesadíssima e sempre atrasada nas passagens de nível... Compreende-se as lágrimas de crocodilo, na dor hipócrita do politicamente correto: se o acordo for à esquerda, garantindo um lugar à sombra (do poder) a comunistas e trotskistas encartados — legitimando-os, o regime fê-los ganhar uma “segunda natureza” sobre a matriz totalitária —, isso não é matéria de escândalo; mas, se a “geringonça” se transforma em “caranguejola” de direita que ensaia para os Açores nova aposta governativa, logo isso soa a usurpação, e o coro das vestais do regime ergue aos céus da pátria um turbulento rumor de vozes, como se viesse aí o apocalipse!

Dito isto, temos de convir que há partidos que são como lugares mal frequentados — e o Chega é um deles. O seu ideário radical suscita legítimo nojo democrático, mas é preciso ver que ele existe porque tem um eleitorado. Passou no Constitucional: tê-lo no sistema é mantê-lo sob controle e na devida vigilância. Podemos sempre dizer à cobra no quintal: Chega p’ra lá! Mas, em vez de papaguearem sobre “cercas sanitárias”, as boas almas da governança em versão geringonça deviam antes penitenciar-se sobre a sua incapacidade reformista, sobre as suas inócuas agendas fraturantes, sobre a sua incapacidade para dar aos portugueses respostas a sério: aos problemas da pobreza e das injustiças sociais, à incontornável corrupção que é o vírus mortal da democracia, à incapacidade de gerir um sistema de saúde decente — eis o que suscita a indignação que faz o “caldo de cultura” dos populismos: de direita ou de esquerda, como se tem visto, eles podem vir a ser os futuros coveiros da democracia. Seria, por isso, recomendável que as elites e os media não levassem o Chega ao colo do discurso político, antes se preocupassem com aquele eleitorado que sofre na pele um país adiado e que precisa de novos gestos políticos para voltar a confiar no sistema: o partido da direita radical será, sobretudo, o “sintoma” de uma doença mais profunda. E lá vem o provérbio chinês: quando o dedo aponta a lua, o imbecil olha o dedo...

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