Crónicas

“Isto anda tudo ligado”

Dei há dias com os olhos num título de jornal: “TGV vai ligar Lisboa ao Porto em 1h15”. Curiosamente, um título igual já fizera manchete no mesmo jornal... há 10 anos! É com certeza uma lentidão portuguesa. Agora com este pequeno pormenor: o TGV vai custar 4,5 mil milhões de euros! Perceba-se: é a “bazuca” europeia a funcionar! Mas, é muito milhão para hora e meia de comboio, mesmo a altíssima velocidade... Faz lembrar aquele Primeiro-ministro com fama de forreta que, numa vinda à Madeira, teria perguntado quanto custara a nova ponte do Porto Novo. Lá disseram os números, e que a obra faria poupar uns bons minutos na estrada. Ao que o nosso Primeiro teria retorquido: mas têm pressa para ir para onde? Agora, também poderíamos perguntar ao contribuinte da ilha do Porto Santo, ou da ilha do Corvo, ou de Fornos de Algodres, ou de Barrancos: foi você que pediu um TGV?

Os títulos de jornal são um isco, por vezes um problema, mas na verdade é o que fica. Outro título: “Costa apresenta plano para investir 43 mil milhões até 2030”. Não sei se foi ele próprio que o disse, mas é mesmo uma “pipa de massa”: a gente até se engana nos zeros, para escrever isso com os algarismos todos... Será que vai chegar “algum” aos contribuintes daqueles sítios tão distantes do TGV?

Outro título: “Ordem dos Advogados diz que vai ‘passar a ser perigoso viver em Portugal’ com a Estratégia do Governo contra a Corrupção”. Uma pessoa até fica sem fôlego para ler um título destes, mas o tema merece (e sufoca-nos, por assim dizer): como é que, de um dia para outro, os jornais e as (poucas) cabeças pensantes deste país desatam a “perorar” sobre corrupção? A questão do Tribunal de Contas, mais o tema da “bazuca” europeia, foram os detonadores para a opinião pública.

Há trinta anos que duas palavras se juntam num estranho conúbio: “milhões” e “interesses”. Tal memória, desgraçada, gera agora novo reflexo condicionado, e eis que o governo se apressa a tirar da cartola legiferante uma pomposa “Estratégia Nacional Contra a Corrupção”. Mas, pasme-se, a nova entidade para a Transparência e Integridade só vai poder funcionar daqui a dois anos, pois não tem sede nem dotação orçamental – o que mostra a verdadeira “vontade política” contra a corrupção! De resto, nada que não faça já parte do historial: sempre que se fala de “fundos”, a ganância arreganha os dentes; o bloco central dos interesses – a famosa “promiscuidade” público-privado – convive há décadas com esse vírus da democracia, sem querer extirpá-lo, ou confiná-lo a sério; o regime partidocrático alimenta uma inércia quase terminal, não dando hipóteses de qualquer reforma do sistema político-eleitoral (e financiamento dos partidos); altas autoridades, novas comissões, novíssimos grupos de trabalho, eis alguns “números” do grande teatro lusitano do “faz de conta” (do Estado a que isto chegou). Basta ver o espetáculo indecoroso da “negociação” do orçamento 2021 para perceber que, nos corredores do poder, a vida real dos portugueses é a grande ausente, e só se negoceia mais poder naquela bolha de irrealidade que sustenta a horrível política partidária: batalhar por lugares, esgrimir pequenos golpes, não desamparar os pilares do sistema.

Há que fiscalizar? Certamente. E quem fiscaliza o fiscal? Se há coisa que a pandemia veio evidenciar, é que “isto anda tudo ligado” (conversa de café, dizem eles...). Mas já dizia o velho Reagan: “A política é a segunda mais antiga profissão do mundo, e percebi que tem grandes semelhanças com a mais antiga”.

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