Crónicas

E o muito tempo que entretanto passou

A casa é antiga, tem muitos quartos, que se seguem uns aos outros sem ordem e sem lógica. O quarto para passar a roupa está antes do quarto de jantar, que está a meio e longe da cozinha, mas esta era a maneira de fazer as coisas no Laranjal da minha infância. De acrescento em acrescento, - todos feitos à pressa, não fosse alguém dar parte e aparecer o fiscal da Câmara, - a casa ficou maior e um pouco mais desconjuntada.

Além de vários problemas estéticos, sofre de alguma falta de funcionalidade e não é fácil torná-la deste nosso tempo. As chamadas perdem-se a meio naquele emaranhado de portas e quartos e a Internet não vai além da sala onde, todas as tardes, o meu pai liga a televisão no máximo para ouvir melhor. É a minha deixa para sair de mansinho e embrenhar-me no quarto onde estão os meus livros e um acervo de coisas fora de uso como cassetes com músicas, rolos de fotografias por estrear e um envelope com disquetes.

Por entre os livros que ficaram em casa, há um porta-chaves com chaves que não sei de onde são, vários copos com esferográficas, todas com mais de 20 anos, muitos cadernos escritos só até meio, misturados com muitas folhas avulso onde, na minha letra redonda, falo de viagens, de pessoas, das quais tenho às vezes alguma dificuldade em lembrar-me de quem são e de como as conheci. A meio há fotografias em molduras, revistas velhas e recortes dos jornais onde trabalhei guardados em capas.

Tenho também uns bonecos do tempo em que se ofereciam peluches e não era tão piroso como agora. Gosto sobretudo do Roger Rabbit de pelúcia que, num Natal de há muitos anos, a minha amiga Raquel me ofereceu. Gostámos tanto do filme por misturar bonecos com pessoas, acho que nos sentíamos mais ou mais assim: metade crianças, metade gente crescida.

Não é só o coelho de peluche que me faz lembrar essa época prodigiosa, em que tive 20 anos e não ficava mal ter gostos de miúda e ver os filmes todos que passavam nos ciclos de cinema o Cine Fórum. Há a estante, as velharias e os livros que lá estão e há ainda um baú em vime para onde atirei as cartas dos anos da faculdade e dos anos seguintes antes do telemóvel ter mudado tudo nas nossas vidas. E eu escrevia muito naqueles meses do Verão, lembro-me de ter selos para o correio azul por ser mais rápido e só levar um dia a chegar.

Um dia era, em 1990, um prazo bom. Por poucos escudos podíamos contar tudo o que nos tinha acontecido, falar da família, dos amigos, dos namorados, dos livros que tínhamos lido e de como as férias estavam a correr. As minhas amigas mais próximas falavam dos dias nas casas de família no Ribatejo, no Minho e na Beira. A classe média nesse tempo tinha dinheiro para colocar os filhos na universidade, mas férias no estrangeiro era coisa de ricos. A maioria sonhava com uma semana na Madeira ou no Algarve.

Todas tínhamos, por isso, envelopes, papel de carta e muitos selos e, quase todas as semanas, íamos aos correios despachar cartas e postais. As estações de correios tinham, nessa altura, frascos de cola e esferográficas presas por atilhos. E lembro-me da quantidade de velhinhos a quem preenchi papéis, vales, a maioria não sabia ler, nem escrever, mas costumava desculpar-se e dizer que tinha deixado os óculos em casa.

Foi numa destas tardes a remexer em cartas que encontrei uma, fechada e com um selo de 38 escudos. Foi-me devolvida em 1992, a minha amiga Monica estava de férias na terra dos pais e não abriu a porta do prédio. Ficou esquecida naquele monte de cartas até esta semana. Na segunda-feira, estará em Lisboa, noutra morada é certo, mas cumprirá a sua função 28 anos depois num tempo em que as cartas estão tão fora de uso como as cassetes com música, os rolos de fotografias e as disquetes.

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