O dia em que se começou a desenhar o futuro
Eu não sabia, mas aquele primeiro dia de aulas do 10º ano, foi o dia em que o meu futuro se começou a desenhar
Aroupa de Verão calhou bem com o calor do primeiro dia de aulas e, apesar de ser já Outubro, as outras miúdas passavam por mim vestidas com as mesmas cores, algumas traziam casacos de malha em cima dos ombros e brincos de plástico. Havia cabelos com permanentes, calças de ganga e ténis e o figurino só ficava completo com os cadernos nos braços. As turmas, em todas as salas do turno da tarde, tinham mais raparigas do que rapazes.
O Girassol não era uma escola feminina, mas as opções do secundário dividiam os géneros. Os rapazes iam para ciências; as raparigas preferiam letras. Uma parte sonhava ser hospedeira da TAP ou guia turística; as mais decididas queriam seguir Direito, embora a maioria estivesse só a fugir da Matemática. Eu, a miúda com uma mochila vermelha que tentava encontrar a sala, vacilava naquele primeiro dia de aulas.
A escolha, a primeira da minha vida, foi um abalo nas expectativas da minha mãe, que queria para mim outro futuro e não via serventia em estudar literatura, História ou Jornalismo. A resposta de que era para ser jornalista não a deixava mais descansada, a ela que ouvia todos os noticiários da rádio e da televisão. Parecia estranho, uma coisa que não era para nós, gente do Laranjal, para filhos de operários e netos de agricultores.
Os jornalistas falavam na rádio e na televisão e eu era a Marta, com uma mochila vermelha ao ombro, mais uma adolescente de 15 anos no meio das outras que enchiam os corredores do Girassol, aos pares e aos grupos, e tinham objetivos mais simples de entender. A dona Celina acreditava que educar era também preparar os filhos para a desilusão e, de tudo o que conseguia ver, não parecia possível fazer da adolescente tímida, que se atrapalhava até para pedir um bolo ao balcão de um café, alguém com desembaraço para as notícias.
Eu não sabia, mas aquele primeiro dia de aulas do 10º ano, o dia em que o meu futuro se começou a desenhar, sai da escola com o peso do mundo às costas, mais insegura do que antes e sem saber se ir para letras tinha sido, de facto, a melhor opção. As salas, os professores e os colegas eram desconhecidos e havia a frieza dos lugares novos e grandes. Lembro-me de que passei os primeiros tempos mais ou menos encolhida, sem saber a quem sorrir e a quem falar. As notas do primeiro período não foram brilhantes.
Foi a força da minha mãe a acabar com a hesitação, a querer resultados e a recusar desculpas até quando eram bons. Às vezes dava a impressão de que não via, que estava muito ocupada a bordar, mas sabia as notas de todas as disciplinas, conhecia as minhas dificuldades e acordava-me todos os dias às oito e meia para manter a ordem. O rigor levou-me à faculdade e abriu caminho para ser o que achou que não era possível.
A minha mãe viveu para ver-me entrar na profissão e começou a juntar os jornais com as minhas reportagens aos do meu irmão no móvel antigo da televisão. A dona Celina achara improvável ter uma filha jornalista, mas quis a vida que tivesse os dois filhos e isso dava-lhe motivos de orgulho. E mostrava as nossas reportagens às mulheres dos bordados, às primas e fazia questão de apontar para as assinaturas. Foi a nossa primeira leitora, uma crítica implacável e uma admiradora honesta e franca, mas morreu cedo.
E nós, os filhos jornalistas, tivemos de seguir caminho sem esse juízo crítico, inteligente e cheio de humor.