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Crónicas

Boas Festas

Todas as quartas-feiras havia um drama antes de apanhar o autocarro para a casa de bordados e, todos os anos, na Festa, vivíamos o suspense de que, se calhar, íamos mesmo falhar o presépio

No calendário da cozinha, manchado e a acusar um ano de uso, sobrava uma folha, mas no Laranjal não se faziam balanços, nem grandes planos. Depois de Dezembro vinha Janeiro e a minha mãe tinha já o calendário do ano novo guardado no armário branco, uma espécie de despensa e armazém das coisas fora de uso. E era de lá que vinha a gambiarra, os enfeites e as caixas de sapatos com as figuras do presépio e o Menino Jesus. Quando eram resgatadas do esquecimento e do fundo das prateleiras havia semanas que as árvores dos vizinhos piscavam atrás das cortinas, mas a minha mãe sofria de falta de tempo.

A dona Celina vivia numa desordem de onde parecia difícil sair. Todas as quartas-feiras havia um drama antes de apanhar o autocarro para a casa de bordados e, todos os anos, na Festa, vivíamos o suspense de que, se calhar, íamos mesmo falhar o presépio. Acho que gostava de alimentar a dúvida a ver se conseguia apoio, custava ver-me a arrastar os pés pela casa, a fazer de conta que limpava o pó e os vidros das janelas. A adolescente que fui não apreciava meter as mãos em água com lixívia para acabar o dia com os dedos vermelhos e inchados, sentia como um castigo.

Eu fechava as portas com força, contrariada; a minha mãe gritava e depois, quase sem se perceber como, os móveis, as roupas, as loiças e os copos regressavam ao lugar e, antes de ir acabar o que ainda havia para fazer na cozinha, o momento chegava. A primeira memória que tenho é uma gruta feita em cima da mesa de engomar e da gambiarra às cores num ramo do cedro da entrada; a última é de 1994, o último Natal em que estivemos todos juntos. O presépio no canto da sala, ia do chão ao tecto, e todos os dias o meu irmão tirava o menino das palhinhas para o colocar noutro lugar.

Ao lado, no antigo móvel da televisão, a minha mãe guardava os jornais com os textos assinados por nós como se fossem tesouros e gostava de mostrar às senhoras dos bordados e às primas. E, nesse ano, partilharam o espaço com o Menino Jesus em cima da escadinha e o ramo de ameixeira que, à falta de melhor, foi enfeitada. Não me lembro se foi preciso comprar luzes, mas nem sempre a gambiarra sobrevivia de ano para o outro dentro do armário branco. A nossa vida estava a mudar e ia mudar ainda mais e, mesmo assim, fomos à missa do galo, fizemos um almoço em casa e acabamos o dia na sala de jantar das minhas tias, a comer sandes de galinha e a beber canja de arroz em chávenas bonitas.

E fizemos o caminho de volta de braço dado, o meu pai uns passos atrás. Acho que para ter a certeza de que estávamos todos depois da tormenta do cancro, que a mim me levou parte da inocência e abocanhou a fé deles de que o futuro seria sempre melhor. Eu estava livre da doença e lembro de ouvir a minha mãe dizer-me que o cabelo estava mais bonito, também me disse para ter paciência, pois tudo o que nos era devido acabava por chegar. E isso era tempo demais para os meus 23 anos, sábio demais para a minha pressa e toda a energia aprisionada em meses de quimioterapia.

A noite acabou a jogar ao cassino na sala, com a televisão ligada e as luzes a piscar no ramo de ameixeira, enquanto fazíamos clarezas à mesa e truques para caçar a ‘menina. Foi o nosso último 25 de Dezembro juntas. O Laranjal ainda era o mesmo, sem balanços e grandes planos, o lugar onde viver um dia a seguir a outro não tinha o glamour de viajar mundo além, mas era muito mais reconfortante e caloroso.

Boas Festas.