O frio da Festa
A minha mãe tirava a roupa mais quente do armário e interrompia as limpezas da Festa para subir o beco e juntar a voz ao coro de mulheres de meia idade, as poucas que assistiam às missas do parto vespertinas, uma excentricidade da paróquia. A igreja estava quase sempre vazia e era penoso ouvir ‘Ó Maria, Virgem do Parto’ pela boca daquelas resistentes, muito devotas, mas pouco dotadas na arte de cantar.
O padre Rebola, com tantas missas para despachar (as de Santo António e estas), não se alongava muito, em meia hora cumpria a tradição e a única pessoa que entrava e saía feliz era mesmo a dona Celina que, todas as noites, já com as luzes acesas, fazia o que podia para me entusiasmar. Não era bonito? A meio dos anos 80 - no ponto mais baixo da popularidade de todas as festas religiosas e dos arraiais - custava a entender onde ia a minha mãe buscar aquela alegria.
Da missa não era e ninguém se demorava no adro, nem os rapazes das motas - que rondavam sempre pelas festas - apareciam para rebentar bombas debaixo das manilhas. Também não sei bem onde estavam as pessoas. A minha mãe e eu estávamos ali depois de um dia inteiro a limpar portas, janelas, a tirar a loiça dos armários, a lavar e a esfregar. A minha mãe também achava isso bonito, aquela imensa desordem de móveis, gavetas e roupas fora do lugar.
O cheiro a lavado, a lixívia e cera no soalho, fazia parte de um todo que, tanto a minha mãe, como as minhas tias, as vizinhas e as senhoras que vinham buscar bordados definiam como “lembrar à Festa”. O que incluía semear trigo para a lapinha, limpar todos os recantos da casa, esfregar o lodo do quintal e ir às compras à cidade. No Laranjal, a cidade significava as lojas, os consultórios dos médicos, farmácias, bancos e um lugar onde viviam pessoas de outra classe, muito mais sofisticadas do que os homens que trabalhavam nas obras, as mulheres dos hotéis e dos armazéns de banana.
Ou as outras, como a minha mãe, que mais ou menos a meio de Dezembro, entrava no autocarro com a roupa de sair, cabelo bem penteado para ir regatear o melhor preço com os empregados das lojas. O que, a meio da adolescência, me enchia de vergonha. “É preço fixo? Então não pode fazer uma simpatia?”, mal ouvia a conversa já o calor me subia cara acima, enquanto o senhor atrás do balcão fazia contas no papel de embrulho, até encontrar um desconto ao agrado da minha mãe.
A dona Celina saía porta fora toda contente, enquanto eu me debatia para segurar os embrulhos e os sacos. As compras não se limitavam a roupa e a sapatos. A minha mãe também renovava a loiça, os copos, os panos de cozinha, comprava meias e roupa interior. E faltavam mãos para tudo, mas fazia pouca diferença as queixas que aquilo de entrar no autocarro e ocupar os bancos com os sacos fazia parte do tal todo que era “lembrar à Festa”. A minha mãe ainda me puxava pelo braço para que visse as luzes assim que a viagem começava, Avenida do Mar adiante.
Quando se descia no Laranjal, ali na curva, já noite fechada e com a aragem fria a dar na cara, a minha mãe subia os degraus da entrada de dois a dois, ainda havia o jantar para fazer, as galinhas para alimentar e os cães. Os embrulhos e os sacos juntavam-se à desordem dos móveis, enquanto a minha mãe fazia contas a todas as despesas - e não havia vez em que não dissesse que tinha sido roubada antes de concluir que, afinal, as contas estavam todas certas.
E mesmo depois da canseira e da despesa, dava gosto vê-la sorrir, de alma cheia, porque até o frio que subia do ribeiro lhe fazia lembrar que se estava quase na Festa.