Encher o coração com o calor de casa
Lá, naquela Lisboa ainda estranha, fria e, às vezes, inóspita, a voz da minha mãe enchia-me o coração com o calor de casa
A minha mãe fez 54 anos poucos dias antes de eu entrar pela primeira vez num avião e lançar-me no desconhecido, a caminho da universidade. Quando lhe acenei, ela estava lá, na varanda do aeroporto, a limpar as lágrimas, sem saber muito bem o que fazer ao que sentia. A vida dava mais uma volta e, apesar de ter anunciado que ia ser assim, não sei se acreditou e os meses que os professores levaram a corrigir as provas específicas deram a impressão de que aquele momento, afinal, não ia chegar.
Quando se soube que era a valer aconteceu depressa. E num sábado de manhã descemos a correr as escadas até à porta do caminho e atrás de mim ficou um quarto vazio, o armário com a roupa de Verão e, de uma certa maneira, tudo o que tinha sido. Dentro da mesinha de cabeceira estavam os livros da infância e da adolescência; nas gavetas da secretária havia papéis, revistas de cinema, uma tigela de barro que ficara de um gelado, o estojo de metal e esferográficas de vários cheiros e cores.
Foi para uma casa vazia e um quarto onde eu já não estava que a minha mãe voltou. A distância pesava, quase que se sentia no corpo. Eu senti lá, na Lisboa que a dona Celina nunca viu; mas era pior no Laranjal, ali os dias corriam como sempre. E todos os dias de manhã, quando ia buscar o pão que a minha tia Teresa trazia do depósito, não falava de outra coisa, a não ser de mim, se me estava a dar bem, se comia, se tinha frio, se tinha feito amigos. E todos os domingos corria para o telefone, para aquelas conversas apressadas por causa da conta.
A minha mãe dava as notícias de casa, das pessoas e das coisas conhecidas e dava a impressão que tudo se pusera em movimento na minha ausência. “O teu irmão arranjou emprego, está a escrever no jornal e tem feito trabalhos tão bonitos!” Não me preocupasse, que os ia ler a todos, os jornais estavam guardados à minha espera. “E a tua prima está a tirar a carta de condução, já fez o exame de código e diz, que depois, vai comprar um carro”. Lá, naquela Lisboa ainda estranha, fria e, às vezes, inóspita, a voz da minha mãe enchia-me o coração com o calor de casa.
E poupava-me às preocupações, não falava de saudades, nem do quanto lhes custava a universidade. O meu pai andava a trabalhar aos fins de semana; ela bordava tudo o que vinha com pressa da casa de bordados. O dinheiro chegava como que às prestações, cinco contos de uma vez; 10 contos mais à frente. “Não te falta comida, nem dinheiro para o passe, nem para as fotocópias?” A dona Celina escondia-me os aborrecimentos, não valia a pena, a pequena está longe e tem mais onde matar a cabeça.
A vida tinha dado mais uma volta, trocado os planos, que andava eu ainda na primária e já imaginava que haveria ser professora ou médica, mas o futuro não era o dela, era o meu. Complicações e falta de dinheiro tinha tido muitas. O tempo que levou até pagar o telhado, antes de se casar? E o casamento, que não teve festa, nem vestido, foi numa missa de manhã, num fato de saia e casaco verde. As coisas andaram tremidas quando nascemos, o meu irmão e eu, e não ficaram muito melhores durante a revolução. O meu pai estava desempregado quando entrei na primeira classe.
Foi a alegria da minha mãe o que primeiro que vi ao chegar três meses depois para as férias. A senhora grisalha, baixinha e faladora acenou-me com um sorriso grande e um abraço maior, estava feliz e quando isso acontecia o mundo inteiro ficava melhor. A memória dos anos da faculdade é feitas de muitas coisas, mas é também a minha mãe a abraçar-me no aeroporto e todos aqueles dias juntas, a falar de tudo e de nada, da política e da bola, de roupa, do meu pai e do meu irmão, das tias e do meu futuro, o que ela não viveu para ver.