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Crónicas

Um postal para o dia da mãe

Nós fazíamos parte dessa geração a quem os professores pediam para usar a imaginação

Eu sou parte de uma geração que começou a celebrar o dia da mãe nos bancos da escola, quando se cortava uma cartolina e dobrava ao meio para parecer um postal, um daqueles bonitos que se vendiam nas papelarias. Os miúdos talentosos faziam milagres, desenhavam corações e flores e deixavam votos numa letra redonda, sem riscos ou erros de português.

Os outros transpiravam das mãos, riscavam os enganos e lambuzavam o papel com cola na tentativa de corresponder ao desafio do professor Baltasar. O senhor bronzeado e grisalho com quem tínhamos aulas não apreciava o talento bem comportado e, por isso, queria que nos saíssem da cabeça ideias inovadoras, colagens com papel de lustro, postais fora do formato.

O nosso maior bem, dizia ele, era a imaginação e não devíamos ficar reféns do habitual, do normal. E nós fazíamos o que podíamos sem saber bem o que era um postal normal. Não havia muitos no Laranjal além daqueles que a minha tia Gabriela mandava do Brasil e os que a senhora Celeste enviava da América pelo Natal. E, se não fosse a mania de nos meter a fazer desenhos e dobragens, a minha mãe não iria receber um pelo Dia da Mãe.

Nem um postal, nem outra lembrança ou presente ou o que fosse para lá de um abraço e de um beijo logo de manhã. E até isso teria reparos, que beijos e abraços eram bons, mas ela queria mais, queria dois filhos disponíveis para ir à venda e lavar a loiça depois do almoço. De preferência calmos e incapazes de andar à zaragata um com o outro.

A minha mãe era uma pessoa exigente e nós fazíamos parte dessa geração a quem os professores pediam para usar a imaginação. Bem comportados e marrões tinha sido todos os outros à conta do fascismo e da obrigação de saber de cor e na ponta da língua os nomes dos rios e das linhas de caminho de ferro de Angola.

E por isso lá estávamos todos a dobrar papel, a pintar e a tentar fazer o melhor daquele presente para dar às mães. Eu lembro-me de ter tido boa nota por ter imaginado um em forma de coração e também tenho memória de como fiz o caminho de casa orgulhosa, por causa da nota e dos elogios do professor Baltasar. A minha mãe ficava feliz com as minhas notas, eu até tinha fama de ter cabeça para a escola. O que era uma sorte, segundo se dizia no Laranjal.

A minha mãe era, no entanto, uma pessoa de uma franqueza desarmante que a tornava incapaz de mentir ou dizer o que não sentia. E quando tirei a minha obra de arte da pasta da escola não conseguiu disfarçar o que aquilo lhe parecia de facto: um borrão, com riscos e desenhos e ainda por cima num formato esquisito. Eu era a filha e ela devia-me a verdade, no mínimo: podia ser boa a contas e aprendia depressa, mas faltava-me jeito para trabalhos manuais.

O amor da minha mãe era assim, não nos fazia melhores, mais bonitos, mais inteligentes e muito menos perfeitos. Se era feio era mesmo; se gostava também dizia. O extraordinário foi encontrar o tal postal, muito anos mais tarde, e sei que o guardou por ser meu, da sua Lina Marta, gordinha e desastrada, que riscava e apagava e fazia buracos nos cadernos, que não era uma menina dotada e prendada, mas que foi muito amada.